No dia 16 de outubro, a deputada Luciana Genro promoveu um Grande Expediente em homenagem e defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana na Assembleia Legislativa e entregou a medalha da 55ª Legislatura a Yalorixá Iyá Vera Soares. Abaixo, o discurso lido no dia, na íntegra:
Senhor Presidente, senhores deputados e deputadas, Yalorixá Vera Soares. Eu quero agradecer as presenças da querida amiga Yalorixá Vera Soares, da Develyn de Oxum, do Dion de Oxum, do Tiago de Bará, da Cris de Oyá, do Daniel de Bará, das presenças de todos vocês que estão aqui hoje, da presença do sempre deputado Pedro Ruas, nossa vereadora Karen Santos, agradecer também a presença do Consea e dos movimentos que compõe essa luta dos povos de matriz africana.
Essa homenagem que eu promovo hoje através do Grande Expediente e também da Medalha que em seguida vai ser entregue a Mãe Vera Soares, é mais do que uma homenagem. É uma tentativa de sensibilizar esta casa para as pautas desses povos tão importantes para a constituição do Brasil enquanto nação, mas que desde que aqui chegaram, enfrentam muito preconceito e discriminação.
Povos de matriz africana são o conjunto dos povos africanos trazidos ao nosso país, as suas variações e denominações originárias dos processos históricos e diferenciados em cada parte do país, na sua relação com o meio ambiente e os povos locais. Estima-se que entre os séculos XVI e XIX, chegaram vivos ao Brasil aproximadamente 5 milhões de africanos e africanas na condição de homens e mulheres escravizados.
Como escravos, foram proibidos de falar a sua língua originária, e até mesmo de cultuar o seu sagrado, os Orixás. Um crime contra quem trouxe para o nosso país muito mais do que a sua força de trabalho. Também trouxe o conhecimento, trouxe o emprego de tecnologias agrícolas e de mineração, além de suas culturas, saberes, das suas tradições e de seus valores civilizatórios que foram preservados graças à sua luta e que estão presentes no povo brasileiro.
Fazem parte das práticas tradicionais de matriz africana o candomblé, o batuque, o tambor de minas, a pajelança, a umbanda, a macumba, o catimbó, a jurema sagrada, dentre outros. Porém a tradição de matriz africana é muito mais que religião; São práticas tradicionais que reafirmam a dimensão histórica, social e cultural dos territórios negros constituídos no Brasil do qual a religiosidade, na verdade, a relação com o sagrado, é um dos seus aspectos.
Outros aspectos tão relevantes quanto à relação com o sagrado é a resistência há mais de 300 anos de escravização. A resiliência de sobrevier em um país que jamais desenvolveu políticas de reparação suficientes, no qual o racismo é estrutural e se manifesta das mais diversas formas. Este povo ainda hoje precisa lutar pela sua territorialidade, pelo seu direito a ocupar um território. Em Porto Alegre, por exemplo a mãe Sandra, da Tronco, está travando uma luta para que seu terreiro não seja removido da Avenida Tronco, onde passam obras da Copa até hoje não finalizadas. Se fosse uma igreja católica certamente ela seria respeitada e não seria necessário travar uma luta tão dura como a que está sendo travada pela mãe Sandra e pelos seus filhos de santo.
Também temos a situação do Mercado Público que está ameaçado com uma tentativa velada de privatização que pode descaracterizá-lo totalmente sem levar em conta o assentamento de um orixá naquele espaço. Ou seja, sem levar em conta que é um espaço sagrado e um espaço de preservação da tradição, que veio da África, mas que é Brasileira e é gaúcha, a partir do momento em que esses povos se constituíram no território gaúcho. Inclusive, não sei se todos aqui sabem, provavelmente não, mas nessa casa é possível visitar a imagem do pai Cabinda, originário desta tradição e que temos poucas informações aqui na casa dos deputados e das deputadas estaduais do povo gaúcho. Ou seja, esta Casa, esta Assembleia Legislativa também é um território de preservação da tradição.
A questão do território é fundamental para os povos tradicionais de matriz africana, pois ele é tido pelos seus frequentadores como um local sagrado para o culto da ancestralidade. São nos territórios próprios que ocorre a convivência em comunidade e o acolhimento independente do grau de parentesco sanguíneo, da classe social ao qual pertencem ou da sua orientação sexual ou identidade de gênero, pois no momento em que estão inseridos nesta comunidade passam a fazer parte de uma família de axé, em que a hierarquia, o respeito ao mais velho são fatores fundamentais para a preservação da tradição e costumes ali conservados e repassados por meio da oralidade. Oralidade e reivindicação ancestral são as marcas desse povo, pois é através da oralidade que se transmite a essência do ser, as características, as qualidades, e as virtudes… Os terreiros são locais extremamente importantes pois o seu ensinamento é a não separabilidade da dimensão do sagrado das outras dimensões da vida, da pessoa e da comunidade.
Trago esses elementos pois o povo tradicional de matriz africana não tem seus direitos amplamente reconhecidos. Não tem a sua importância devidamente reconhecida. Embora sejam da cultura tão essencial para a formação do nosso país, o racismo faz com que constantemente sejam atacados os seus direitos e invisibilizada a sua importância. O STF chegou a julgar a proibição da sacralização de animais, nos rituais, e que são também alimento como se os rituais de matriz africana fossem os únicos a sacrificar animais e consumi-los como alimento.
Frente em Defesa dos Povos de Matriz Africana solicitará audiência sobre terreiros ameaçados
É importante que nós, deputados e deputadas, estejamos sempre um passo à frente legislando e lutando, não para garantir que uma religião tenha soberania sobre outra, mas para que os direitos de todos sejam garantidos em um Estado que é laico. E a sua laicidade tem que ser respeitada. Essa foi a nossa ideia ao recriar a Frente em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, da qual eu sou uma das coordenadoras e o então deputado Pedro Ruas foi um dos criadores na legislatura passada. As religiões de matriz africana como são chamadas têm sido perseguidas ao longo da história, mas atualmente, com um governo reacionário que estimula o racismo, estimula o preconceito a situação está se agravando. No Rio de Janeiro foram 12 casas incendiadas por grupos que se intitulam bandidos de Jesus. Tenho certeza que Jesus não daria o seu aval para esse tipo de preconceito e discriminação.
E não se trata apenas de intolerância religiosa. A intolerância religiosa é uma expressão do racismo e a liberdade para a venda de um livro que demoniza as tradições africanas é também fruto do racismo institucional que faz com que as instituições não percebam a extrema violência a todo um povo que atos pensamentos como estes representam e reproduzem. Crianças são apedrejadas na rua, terreiros são vilipendiados e a morte constante de negros e negras no nosso país é inaceitável.
Os povos tradicionais de matriz africana tem direito ao seu sagrado, a sua língua, a sua alimentação, a sua história e a sua cultura. O culto a qualquer crença não pode ser difamatório de todo um povo e de toda uma tradição. A forma possível de enfrentar o racismo estrutural é através da organização, da articulação do próprio povo negro. E nós, brancos e brancas, temos que ter consciência do nosso lugar de privilégio e estar ao lado do povo negro nesta luta. A nossa frente parlamentar quer ser um instrumento para colaborar nesse sentido reafirmando que mais que um religião que tem um povo trata-se de um povo que tem o seu sagrado, a sua linguagem, a sua cultura o seu direito à alimentação. Negros e negras são a maioria do povo brasileiro. A propagação do ódio a tudo que vem da cultura negra é a propagação do ódio à negritude e as suas consequências são graves. É preciso valorizar e cada vez mais reafirmar a identidade negra no nosso país. O respeito ao sagrado dos povos tradicionais é parte dessa valorização.
Apoio à campanha #TradiçãoAlimentaNãoViolenta
Um mandato em defesa das religiões de matriz africana
Vitória para o povo de axé
De fato nós ainda temos um longo caminho pela frente. De fato, nós ainda temos um longo caminho a percorrer. Avançamos bastante, mas Porto Alegre é a Capital mais segregada do Brasil. Nós ainda temos uma separação física entre brancos e negros na nossa cidade, especialmente nas suas regiões de moradia. O racismo e a discriminação são uma realidade cotidiana que nós podemos também perceber no nosso dia a dia. E é nesse sentido de enfrentamento a esta realidade que hoje também entrego a Medalha da 55ª Legislatura para a Yalorixá Vera Soares, que é coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana – Fonsanpotma. Vera Soares é mãe de cinco filhos – e ser mãe de cinco filhos é um currículo. Nascida em Porto Alegre, formada técnica de enfermagem pela Escola de Enfermagem da UFRGS, é Yalorixá – enquanto identidade negra. Desde 1990 é militante orgânica do movimento negro, iniciando pelo carnaval, desenvolvendo o seu trabalho no Clube de Baianas Independentes, uma organização de mulheres negras, e na entidade carnavalesca União da Vila do IAPI. O carnaval é, sem dúvida nenhuma, uma expressão muito importante das tradições do povo de matriz africana e a mais evidente prova da fusão dos povos de matriz africana com as outras etnias que compõem o brasileiro na formação do próprio povo brasileiro. A Iyá Vera também foi coordenadora, de 2000 a 2006, do Fórum Estadual de Articulação de Entidades Negras, vinculado ao Conen, e também membro da organização do Comitê Afro gaúcho, no Fórum Social Mundial. Elaboradora e construtora do Conselho Nacional de Yalorixás e Ekedes Negras, organização de mulheres do Axé, sendo esse um espaço de discussão e formação do papel político dos terreiros de matriz africana, hoje comunidade tradicional.
Sua luta histórica contra o racismo e a intolerância merece o devido reconhecimento por parte desta Casa, assim como já o é reconhecido fora daqui. A entrega desta medalha hoje à mãe Vera, é uma homenagem a ela, pessoalmente, pela sua história, pela sua tradição, mas é também uma homenagem a todo povo de matriz africana, a todas as mulheres, em especial, de matriz africana, que são mães, trabalhadoras, que lutam, cotidianamente, em defesa dos seus filhos, tão constantemente ameaçados pela violência, que são aquelas que estão no dia a dia da sua realidade de vida, batalhando para enfrentar o racismo e para garantir um futuro digno para as suas famílias. Mãe Vera, esta homenagem é mais do que merecida.
Eu também quero agradecer ao Fonsanpotma, na figura da nossa homenageada Mãe Vera; ao movimento Vamos à Luta, que foi fundamental para que este grande expediente acontecesse, na figura da Develyn de Oxum e Dion de Oxum, que compõem a mesa dos trabalhos; ao Tiago de Bará; ao representante da Asidrab; ao Daniel de Bará, filho de santo e representante do coletivo Juntos, um parceiro na luta em defesa dos povos tradicionais; a Cris de Oyá, que coordena a Casa Emancipa Restinga. Tenho um grande orgulho de ter sido a fundadora do Emancipa no Rio Grande do Sul e ter ajudado a Cris a transformar a Casa Emancipa Restinga numa realidade, assim como ajudei a Carla Zanella, que está aqui e também é uma representante dos povos de matriz africana e contribui para tornar realidade o Emancipa Mulher, uma escola de formação feminista e antirracista.
Essas duas iniciativas, das quais eu participo – a Casa Emancipa Restinga e a Casa Emancipa Mulher –, muito me orgulham, porque fazem parte de uma real e verdadeira luta contra o racismo, não apenas no discurso, mas na prática concreta da minha atividade política.
A filosofia das culturas tradicionais de matriz africana baseia-se nos elementos primordiais, nas relações do humano com o universo, que se manifestam na forma de oceanos, rios, matas, florestas e lagos. São relações que não se resumem ao uso, mas que também envolvem valores que vão muito além da troca predatória e do domínio para usufruto da natureza.
Nesse sentido, todos temos muito que aprender, respeitar e valorizar esse povo tão fundamental da nossa cultura. Muito obrigada a todos vocês que estão aqui hoje. Espero que possamos seguir nesta luta para que cada vez mais a Assembleia Legislativa seja um lugar de acolhimento e de encontro para a mobilização. Sabemos que a mobilização e a união dos povos de matriz africana são fundamentais para que possamos enfrentar o racismo, a discriminação e os discursos de ódio tão fortes hoje na nossa sociedade. Ao mesmo tempo, sabemos que, assim como as LGBTs não vão voltar para o armário, as mulheres não vão voltar para a cozinha, o povo negro não vai voltar para a senzala e vai, cada vez mais, ocupar os espaços que merece na nossa sociedade. Muito obrigada.