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Texto originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 7 de janeiro de 2019.

O cadáver de Marielle Franco é um campo de batalha no imaginário do presidente eleito e seu secto de bolsonaristas em guerra contra o fantasma do comunismo, ameaça que nunca passou perto do Brasil recente, mas que moveu seus moinhos eleitorais. Quem hoje trabalha em cargos comissionados no governo, mas em suas redes sociais tiver postado #MarielleVive, está fora.

Diferente de #EleNão ou #ForaTemer —hashtags que também conduzem à degola— #MarielleVive não é uma pura expressão ideológica. No dia da morte da vereadora do PSOL pelo Rio, essa hashtag foi capaz de unir os ultrapolarizados campos da rede social, numa demonstração de que, apesar de toda a disputa e toxidade das redes, os brasileiros ainda são capazes de se comover, juntos, diante da brutalidade de um assassinato a sangue frio.

Naquele momento, a administradora Desire Queiroz, depois integrante da equipe de transição do governo, também manifestou sua consternação diante do crime. “Discordo de todas as posições de Marielle Franco, mas jamais vou defender a morte de alguém”, disse ela, justificando a postagem, quando confrontada, hoje, com a possibilidade de perder o cargo de secretária nacional de Juventude no governo. “Sempre fui de direita e conservadora. Minhas pautas são a redução da maioridade penal, sou contra o aborto”, disse para a repórter Andrea Sadi, da GloboNews, antes de concluir: “O que eu disse é que a morte de qualquer um me comove”.

Mas esse sentimento humano a família Bolsonaro desconhece. Supostamente cristãos, o clã nunca emitiu uma só palavra a respeito —seja de conforto aos familiares, ou de cobrança por justiça. Até mesmo o hoje senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), com quem Marielle conviveu por dez anos na Assembleia do Rio, ficou calado. E esse silêncio ensurdecedor pode e deve ser resumido em uma única palavra: cúmplice.

A ideologia bolsonarista de combate ao “vermelho” é tão cega que não enxerga os nove tiros disparados contra a vereadora eleita. Até na hora da morte, eles têm lado, ideologia. O direito à vida só é respeitado se for a vida de direita. Destituída de sua vida e morte brutal, Marielle aparece apenas como mais um símbolo esquerdista que deve ser combatido, silenciado, novamente morto. Como no ato de rasgar a placa com seu nome, na maior ação de marketing macabro de que se tem notícia, protagonizada por dois então candidatos a deputado pelo PSL, e, depois, pelo governador eleito do Rio de Janeiro. Eles não apenas querem que ela morra de novo e de novo como são capazes de fazer do seu cadáver um campo de batalha eleitoral.

Marielle é também mais um corpo negro que caiu, junto aos 63 mil homicídios no Brasil em 2017, junto aos 92 policiais militares que tombaram no Rio de Janeiro em 2018 por fazerem parte da polícia que mais mata e mais morre do país. Sua vida não é e nem será mais importante do que a de ninguém. Mas na hashtag #MarielleVive há um grito em defesa da democracia, na medida em que o assassinato de um parlamentar, seja ele ou ela quem for, é um crime contra a República brasileira. A nossa bandeira, que jamais será vermelha, como repete ad nauseam o sr. Jair, já tem as marcas do sangue de Marielle Franco.

À época em que Bolsonaro sofreu seu atentado, todos as lideranças do campo progressista se manifestaram. Os quase dez meses de silêncio da família sobre o caso e a perseguição aos seus próprio correligionários ainda capazes de demonstrar alguma humanidade com o outro, seja próximo ou não, escancaram o fato deles desconhecem os únicos sentimento capazes de unir o Brasil: a solidariedade e o direito à vida.