A situação de saúde mental dos policiais militares do Rio Grande do Sul vem se agravando e causa preocupação dentre os brigadianos. O índice de suicídios, que já era alto, vem aumentando entre 2020 e 2021, segundo relatos dos próprios policiais. E a situação é pior para os praças – soldados, sargentos e tenentes, que são as patentes de nível médio –, que estão nas ruas todos os dias e não têm um plano de carreira que valorize o seu trabalho nem perspectiva de promoções. Mas ao invés de elaborar um plano de carreira, o governo estadual apresenta uma proposta de reforma da previdência que irá penalizar os militares de nível médio aposentados, que passarão a ter descontos no valor que recebem.
“Não existe uma tabela, não tem plano de carreira, então não se progride de cargo ao longo dos anos como acontece com os oficiais. Isso adoece muito a categoria. Morre um brigadiano por semana”, relata um soldado que conversou com a equipe do nosso mandato e prefere não ser identificado. Entre 2015 e 2018, 17 brigadianos tiraram a própria vida. Em 2019, foram mais quatro. Ainda não há dados oficiais sobre 2020 e 2021, mas os trabalhadores percebem o agravamento no quadro.
O soldado, que iremos chamar de João (nome fictício), está há mais de 20 anos na corporação e segue na primeira patente. Ele explica que há duas possibilidades de ingresso na BM: como praça ou como oficial. Os praças, grupo ao qual ele pertence, só podem progredir de soldados para sargentos ou tenentes a partir de concursos internos com pouquíssimas vagas. Eles são a maior parte do efetivo (quase 70%) e recebem salários muito mais baixos que os oficiais, muitas vezes se aposentando com o mesmo salário com o qual entraram na corporação, décadas antes.
Segundo dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, morrem mais policiais militares no Rio Grande do Sul por suicídio do que em serviço. Ainda, há os que morrem por doenças causadas ou agravadas pelo estresse do dia a dia. Na última semana, causou preocupação dentre os praças o caso de um soldado morador do interior do Estado que se aposentou por invalidez, devido a problemas de saúde mental, e relatou aos colegas estar passando fome.
“A pessoa que se aposenta como soldado ganha uma miséria, sendo alguém que trabalhou tanto tempo e foi embora doente pela profissão. Recebi o vídeo do colega filmando a geladeira só com água e gelo, aquilo ali me arrebentou, e a esposa falando que ganhou uns peixes de um pescador e por isso tiveram como comer. Dá uma dor o vídeo do colega, mesmo sem eu conhecê-lo. A gente se ajuda, divide o pouco que a gente tem. Está beirando o insuportável”, relata o soldado João.
Ele lamenta, ainda, o descaso da sociedade e dos governos com a situação. “O governo vira as costas para essa situação. E infelizmente a imagem da polícia não é boa, nós sabemos disso. Mas é o primeiro número que a gente lembra de ligar para qualquer coisa. Incêndio, acidente, e a Brigada Militar vai atender”, destaca.
Ele próprio relata já ter precisado ficar afastado por questões psicológicas, após ter um ataque de ansiedade e pânico enquanto trabalhava, e toma remédios até hoje. “Não é nada fácil, e vemos isso acontecendo com todos os colegas. São absurdos que só quem ama mesmo a profissão para aguentar. Hoje em dia, eu tenho 40 anos e me sinto com 70, fisicamente e psicologicamente”, lamenta.
Ao comparar o cenário da Brigada Militar com outras polícias militares do país, o soldado João reforça a desigualdade com que os militares de nível médio são tratados no Estado. “Na maior parte das polícias do Brasil, entra-se como soldado e, com cerca de sete anos, progride-se para cabo, passando para terceiro-sargento a partir de dez anos e segundo-sargento a partir de 20. No Rio Grande do Sul, no entanto, os praças não conseguem planejar adiante, pois dependem dos raros concursos internos para progredir dentro das limitadas patentes para onde podem subir”, explica.
Recentemente, o Departamento Administrativo da Brigada Militar realizou um censo entre os 18 mil integrantes da corporação. A pesquisa revelou que 77% dos brigadianos de nível médio disseram estar insatisfeitos com a carreira, dos quais 34% disseram estar muito insatisfeitos. Quase metade da tropa (46%) está insatisfeita com a remuneração que recebe e pelo menos 23% dos entrevistados relevaram que desejam mudar de profissão.
A Brigada Militar vem operando com apenas 50% de seu efetivo ideal. Este déficit é sentido diariamente pelos soldados e pela população gaúcha, onde muitos municípios possuem uma guarnição aquém das necessidades de segurança da região.
Quando foi divulgado, em dezembro de 2020, o censo revelou que o efetivo da corporação era de 17.952 pessoas, das quais os soldados representam a imensa maioria: 12.385 homens e mulheres, o que corresponde a 68,98% da Brigada Militar. Chama atenção o fato de a corporação ter somente 18 coronéis na ativa, enquanto na reserva eles são mais de 500.
A necessidade de um plano de carreira
A criação de um plano de carreira que valorize os profissionais é, atualmente, a principal reivindicação dos praças. A partir dos relatos de adoecimento da categoria, a deputada Luciana Genro (PSOL) vem cobrando do governo do Estado que seja elaborado um plano que institua novamente a verticalidade salarial e garanta acesso a promoções por critérios objetivos e justos. A deputada ainda ingressou na Justiça contra a Reforma da Previdência dos militares e apresentou, em 2019, uma emenda exigindo o retorno da verticalidade salarial quando se debatia os projetos do governo Leite que retiravam direitos dos militares de nível médio.
A ausência de promoções faz parte da realidade dos praças. Ao invés de garantir as promoções, o governo e o comando da Brigada Militar adotam a prática das substituições temporárias, que são instáveis, corroem a carreira dos militares e causam insegurança nos servidores. “Quando um soldado está temporariamente substituindo um cargo de sargento, por exemplo, a parcela de remuneração que ele recebe para isso não integra a base de cálculo previdenciária, o que reduz em muito a arrecadação do Estado”, observa a deputada Luciana Genro.
Em abril de 2020 esse montante livre de contribuição chegou a quase R$ 11 milhões. E em janeiro de 2020, eram 6.158 servidores nessa condição de substituição temporária (cerca de 1/3 do efetivo total).
Em dezembro de 2020, após o envio de um ofício solicitando informações, o governo respondeu pela primeira vez aos questionamentos de Luciana Genro sobre o plano de carreira, afirmando que o tema já está sendo debatido, mas que ainda não há um projeto formalizado neste sentido.
O cenário tornou-se ainda mais dramático com os projetos aprovados pelo governo Leite em 2019, quando os praças perderam a garantia da verticalidade salarial e até mesmo a possibilidade de promoção ao passar para a reserva. Além de receberem a remuneração por subsídio, os militares de nível médio perderam os triênios e adicionais de 15% e 25% por tempo de serviço. A categoria ainda viu serem criados três níveis de graduação de soldado, aumentando para 10 anos o tempo necessário para progressão do nível 3 para o nível 2, e de 20 anos para o alcançar o nível 1.
Tudo isso contribui para o cenário de adoecimento da tropa. Para fortalecer o apoio à saúde mental dos brigadianos, a deputada Luciana Genro aprovou uma emenda destinando R$ 300 mil a projetos que promovam o cuidado nesta área. A verba pode ser aplicada para fortalecer o Programa Anjos, que promove a capacitação de militares que estarão aptos a atuar como facilitadores para auxiliar e encaminhar os casos de adoecimento mental que necessitem de atenção especializada.
A deputada também protocolou o projeto de lei 40/2019, que prevê, dentre outras medidas, o desenvolvimento de programas de acompanhamento e tratamento dos agentes envolvidos em ações com resultado letal ou alto nível de estresse, assim como a implementação de políticas específicas para dependência química e para prevenção do suicídio, disponibilizando atendimento psiquiátrico, núcleos terapêuticos de apoio e divulgação de informações sobre o assunto.
Para os soldados, a situação está se tornando insustentável. O soldado João, que conversou com a nossa equipe, relata vir de uma família de brigadianos, mas ele não quer que sua filha siga o mesmo caminho. “Minha filha tem muita vontade de ser brigadiana, mas ela já está em dúvida e eu te confesso que nem estou insistindo muito, com uma dor no coração. Meus dois avós foram brigadianos, meu pai também, agora eu, mas estou querendo que ela siga outros caminhos”, desabafa.