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Por Luciana Genro

Vivemos uma combinação de crise sanitária e econômica inédita para a nossa geração. O mundo parou. As mortes são contadas às centenas de milhares no mundo e os números certamente estão subestimados, pois faltam testes. O aumento de mortes por Síndrome Respiratória Aguda, sem diagnóstico de Covid- 19, daria uma dimensão da subnotificação, mas este número também não está disponível.

Quem mais morre são os idosos, e chama a atenção a naturalidade com que alguns governantes, como Bolsonaro, encaram este fato. Como se a morte de uma pessoa idosa, que poderia viver mais um ou dez anos, não fosse uma tragédia.

Também os trabalhadores da saúde, adoecem em enorme quantidade, e muitos morrem. Eles, na verdade são elas: 70% dos trabalhadores da saúde em todo o mundo são do gênero feminino. Elas são mal pagas, tem jornadas extenuantes, pressão constante e brutal, falta de EPIs. Não é casual que sejam mulheres. Os trabalhos que envolvem cuidados (mal)remunerados ou não, em geral seguem sendo exercido majoritariamente por mulheres.

E a pandemia sacrificou ainda mais as mulheres, que também vivem o drama da violência doméstica se agravar com o confinamento. No Rio de Janeiro o aumento de denúncias foi de 50%. O fenômeno é tão grave que a ONU emitiu recomendações sobre o tema.

As perspectivas não são nada animadoras, pois do ponto de vista sanitário, enquanto não houver vacina ou remédio eficaz, não há volta ao normal. Do ponto de vista econômico a perspectiva é uma recessão ainda pior do que a vivida em 2008. Na verdade é o aprofundamento da crise que vem se arrastando desde então. A Oxfam estima que esta combinação de crises pode gerar 500 milhões de novos pobres no mundo.

Na arena pública cresce uma polêmica ideológica entre a extrema-direita e a ciência. Os ataques de Trump à OMS, as posturas extremamente atrasadas de Bolsonaro e de governantes de países como Belarus, Turcomenistão e Nicarágua, constituem a vanguarda deste atraso. A defesa do pensamento científico e da pesquisa acadêmica coloca-se como uma tarefa primordial em unidade com amplos setores.

Qual será o resultado deste processo é ainda incerto, mas é possível arriscar alguns prognósticos.

A extrema direita já vinha ganhando corpo na ausência de uma alternativa anti sistema pela esquerda. Ao mesmo tempo ela se choca com uma consciência democrática. Com seu negacionismo anti-científico, Trump e Bolsonaro se enfraqueceram frente a setores mais amplos, conscientes da importância da ciência.

O neoliberalismo, como pensamento político e doutrina econômica debilitou-se pois os governos estão sendo obrigados a emitir moeda e endividar-se para evitar o caos absoluto. Mas a adoção de medidas de salvação da economia capitalista não significará a salvação do povo do aumento da pobreza. É preciso dizer que o pensamento neoliberal não é a defesa da ausência de intervenção estatal, mas a intervenção estatal milimetricamente calculada para defender os interesses do capital.

A tragédia é que em lugar nenhum do mundo há uma direção revolucionária com força social suficiente para arrancar desta enorme crise um desfecho do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores, isto é, uma mudança estrutural no sistema político e econômico.

No Brasil a situação é grave e ainda deve piorar. Em vários estados já há pacientes na fila para UTI. Médicos discutem protocolo para decidir a quem salvar. Mortos são empilhados nos cemitérios e corredores dos hospitais.

Bolsonaro não demonstra nenhuma empatia com os mortos ou com os que estão na linha de frente tentando evitar as mortes. É covarde, não se responsabiliza. Ameaça as liberdades democráticas e o funcionamento das instituições. Não se intimida em defender claramente o favorecimento da sua família.

A ajuda emergencial de 600 reais converteu-se em um verdadeiro show de humilhação, com pessoas passando a noite nas filas para conseguir o dinheiro. Não é casual. O objetivo é gerar desespero para que as pessoas pressionem pelo fim do isolamento. Até mesmo economistas de tendência liberal afirmam que o problema não é falta de dinheiro. É hora do país endividar-se, emitir moeda e gastar. Mas essa postura não ajudaria Bolsonaro a garantir a sua base social para pressionar pelo fim do isolamento. Afinal, as lojas Havan precisam vender.

A base social da extrema direita é alimentada pelo desespero da luta pela sobrevivência econômica. O negacionismo coesionou uma linha semifascista, do núcleo duro do bolsonarismo. Ao longo do seu mandato, Bolsonaro e seu entorno familiar afastaram setores mais amplos do centro do poder em benefício da promoção de seus interesses familiares e da radicalização golpista de extrema-direita. Pouco a pouco, as defecções levaram ao forte isolamento em que se encontra Bolsonaro hoje.

O salto na crise com demissão de Sérgio Moro é muito importante. O inquérito aberto pela PGR vai ser um grande palco. Moro, conhecedor dos meandros da Justiça, não seria ingênuo de sair atirando se não tivesse provas do que disse.

Bolsonaro perdeu, em menos de 10 dias, os dois ministros mais populares de seu governo. Está muito mais perto de cair do que de dar o auto golpe que gostaria. Tem menos força para impor o fechamento do regime. Tem contra si a maioria dos governadores, os principais partidos, o Poder Legislativo, com Rodrigo Maia a frente, e o STF.

A pesquisa Atlas, divulgada na segunda-feira (27 de abril), mostra uma nítida baixa da popularidade, caindo para 21% os que creditam ótimo/bom para o governo, contra 49% de ruim/ péssimo, além dos 28% que julgam o governo como regular.

Os militares aparentemente não estão confortáveis mas ainda permanecem, numa espécie de tutela de incapaz, aguardando o momento em que poderão ter que assumir um papel mais protagonista.

Em oposição surgiu um campo amplo que uniu ciência, trabalhadores da saúde, setores mais lúcidos da opinião pública, a maioria dos governadores e a grande imprensa, tendo a Rede Globo como carro-chefe. Bolsonaro seguirá enfraquecendo-se e a hipótese de uma unidade burguesa para remover Bolsonaro como “troca de fusível” é cada dia mais possível.

É gritante a falta de uma oposição de esquerda robusta. O PT segue contra o impeachment. Tudo indica que sua estratégia é deixar Bolsonaro sangrar, de preferencia até 2022. Não compartilhamos desta estratégia apegada ao calendário eleitoral. Ela pode levar a uma grande derrota. Por isso apresentamos o pedido de impeachment, que ganhou força social, com intelectuais, artistas e mais de um milhão de assinaturas. Ao nosso somaram-se vários outros. É fundamental unificar os pedidos e pressionar Maia a aceitar.

É preciso ganhar força, base social para lutar pelo impeachment e pelas medidas econômicas e sociais que garantam a vida. Os trabalhadores da saúde, que saíram à rua no 1 de maio em Brasília em uma manifestação de novo tipo, com máscaras e distanciamento, apontam um caminho necessário. Já não podemos mais nos dar ao luxo de apenas ficar em casa. Em tempos de pandemia, novas formas de organização e mobilização estão surgindo. São urgentes e necessárias.