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Artigo do filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, originalmente publicado na Folha de São Paulo em 19/01/2020.

Em 2015, fiz a música para uma peça de Roberto Alvim. Tratava-se de uma interpretação de “Júlio César”, de Shakespeare, reduzida para dois atores. Havia algo na peça que ganhou atualidade inesperada. Seu próprio diretor a encenou da forma mais macabra.

A ideia central era mostrar como a história se encarna em pessoas sem que elas o saibam. Brutus imaginava estar a defender a república, mas ele fora usado pela história para produzir o império. Pois tal processo traz novamente à vida fantasmas que são, na verdade, aquilo que uma sociedade tem de mais real. As pessoas acreditam estarem a agir por consciência própria, mas elas estão sendo movidas por processos que se dão às suas costas, que se encarnam em suas falas e gestos.

Alvim afirmou recusar a “origem espúria” das ideias estéticas que ele mesmo reconheceu partilhar com o ideário nazista, como se fosse possível fazer tal distinção. Ao mesmo tempo, afirmou que os trechos que plagiamGoebbels foram “enxertados”. Difícil imaginar descrição mais precisa, por mais que ela seja farsesca. De fato, a partir do momento em que o ideário estético nazista parece estranhamente próximo, nosso corpo será tomado de forma integral, nossa fala e nossas ações serão “enxertadas” por fantasmas que voltam com a força de espectros que estavam sempre latentes, à espera da primeira oportunidade para se explicitar. Não se fala em arte nacional feita para “salvar a juventude” da sua degradação e salvar a “civilização cristã” de sua ruína inexorável impunemente. 

Que esse espectro seja o fascismo serve apenas para calar aqueles que durante esses últimos anos procuraram nos desqualificar dizendo que éramos muito alarmistas quando falávamos do fascismo imanente ao governo Bolsonaro. Pois esses preferiam tratar o fascismo brasileiro como um anedotário, sem querer ver que, ao contrário, ele era e continua a ser um eixo fundamental de um país cujos ocupantes do governo louvam torturadores e se veem em uma revolução conservadora enfim realizada, mas há muito gestada.

Isso não poderia ser diferente, já que estamos a falar de um país que, nos anos 1930, contava com mais de 1 milhão de membros nas hostes do integralismo. Um país que viu sua versão nacional do fascismo, com sua tríade Deus, pátria, família (mais uma vez atualizada), fornecer à ditadura militar alguns de seus principais quadros. Miguel Reale, um dos ideólogos do aparato legal da ditadura militar fora integralista. Plínio Salgado, seu líder principal, terminará como deputado pela Arena, chegando a escrever compêndios de educação moral e cívica para a ditadura.

Nada disso serviu para que lembrássemos como nunca acertamos as contas com o fascismo brasileiro e seus representantes, com sua violência e segregação. Ao contrário, ele é tão útil que os ditos agentes “modernizadores da economia” não veem problemas em chamá-lo à superfície caso precisem passar os ditames de sua “racionalidade econômica” à força. Neste sentido, o Brasil caminha para se transformar em um laboratório mundial de junção entre ultraneoliberalismo e violência fascista, mostrando o caminho para uma nova roupagem do autoritarismo. A queda do secretário da Cultura não muda em nada este horizonte.

Por fim, há de se lembrar que não cabe a um funcionário público dizer o que a arte de um país deve ser. A função do estado na cultura é simplesmente permitir a circulação daquilo que não circula, por ser estranho aos interesses econômicos ou às leituras predominantes. O  Prêmio Nacional das Artes proposto deve ser imediatamente abortado. Ele é a continuação do fascismo por outros meios.