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Artigo do filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle, originalmente publicado na Folha de São Paulo em 01/02/2019.

No Brasil, os sonhos de desenvolvimento e segurança produzem monstros. Sonha-se com o desenvolvimento pretensamente produzido por empresas internacionalmente conectadas no capitalismo global e acorda-se com centenas cadáveres boiando em lama tóxica. Sonha-se com a mão forte de um governo duro contra o crime e acorda-se governado por grupos organicamente ligados a milicianos especializados em aterrorizar populações economicamente vulneráveis e esquecidas, além de assassinar desafetos.

Não é realmente difícil compreender porque essas inversões de sonhos em pesadelo são tão recorrentes por aqui. O crime hediondo produzido pela Vale serviu ao menos para evidenciar a rede de banditismo na qual o capitalismo nacional é assentado. CEOs arautos da modernidade gerencial tecem relações incestuosas e corruptas com todos os níveis dos governos que, por sua vez, ignoram sistematicamente todos os alertas de setores da sociedade civil engajados nas causas ambientais. Isto ocorre enquanto os que tomaram de assalto o Palácio do Planalto preparavam o desmonte final da parca fiscalização que ainda existia para que enfim o que há de mais predatório no sistema produtivo capitalista pudesse ter diante de si uma avenida de devastação desimpedida.

Crimes como o praticado pela Vale não são feitos sem anos de preparo sistemático. Eles não são um ponto fora da curva, mas a expressão mais clara do que realmente é a “racionalidade gerencial” a qual estamos submetidos. A seu favor está o estado brasileiro: gerente de uma noção de progresso que é apenas outro nome para a defesa de executivos cujos ganhos se contam na casa de milhões anuais enquanto assassinam a população com as armas da negligência e da irresponsabilidade. Esses são os verdadeiros criminosos que destroem o país e contra eles você não encontrará ninguém no governo atual, apenas cúmplices.

Crimes como esses, não por acaso, ocorrem normalmente em países como Brasil, Bangladesh, Índia. Ou seja, a periferia da produção do capitalismo global mostra claramente o que é a totalidade do sistema. Relações predatórias e escravistas permanecem em meio a discursos de “responsabilidade social”, “desenvolvimento sustentável”, “consumo consciente” e outras palavras vazias que visam apenas esconder o que essa racionalidade econômica realmente é. Pois o cálculo já está feito: mesmo depois das quedas na bolsa, das multas, a Vale ainda lucrará com o crime.

Nenhum de seus altos executivos irá para a cadeia. Em breve, teremos análises “isentas” e “racionais” falando de que, apesar de tudo, a empresa é importante para o país e precisará continuar funcionando. Até que, um dia, você irá ligar sua televisão é verá uma dessas peças publicitárias com fundo musical feérico e redentor com o slogan “A nova Vale mudou porque você também mudou” na qual o comprometimento social da empresa será louvado em meio a muito verde, árvores frondosas e crianças pobres felizes.

Essas pessoas, no entanto, trabalham sem ler poesia, e este é seu maior erro. Pois se eles lessem poesia, talvez descobrissem esses versos de Torquato Neto: “leve um homem e um boi ao matadouro/ aquele que berrar é o homem/ mesmo que seja o boi”. Eles acreditam ter diante de si uma população bovina e inerte, que se deixará afogar na lama e submeter-se a milícias como se isto fosse uma fatalidade natural. Mas eles sempre são pegos de surpresa quando a cólera popular explode. Só que quanto mais ela explode, mais difícil é fazê-la voltar ao ponto de partida. Para a grande massa da população, o capitalismo nacional é isso e nunca passará disso: lama e tiros.