safatle
safatle

| Artigos

*Artigo do filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, originalmente publicado na Folha de São Paulo em 21/07/17.

Uma das palavras mais evitadas na política brasileira atual é “autocrítica”. Para muitos, ela é sinal de fraqueza, coisa de quem tem a estranha compulsão por jogar no time adversário ou o infantilismo de quem desconhece a dureza da realidade do embate político.

No máximo, autocrítica é algo que se faz entre quatro paredes, sem exposição pública e de forma discreta. Esta perspectiva, infelizmente, é moeda corrente em todas as posições e espectros políticos.

Há de se perguntar, entretanto, que tipo de pensamento político é este no qual a autoinspeção pública de suas crenças e práticas é compreendida como impotência, e não como a verdadeira força.

Um pensamento que precisa alimentar a ilusão falocêntrica de infalibilidade ou de que, como se diz à cantonada atualmente, “estamos sendo julgados pelas nossas virtudes, não pelos nossos erros”.

Tal pensamento insistirá que agora não é hora para autocrítica, afinal nos encontramos em embate renhido contra forças opostas.

No entanto, é interessante como, para seus defensores, a hora da autocrítica nunca deve chegar, até porque sempre estaremos em luta constante, sempre será necessário alimentar a mobilização através do “não podemos parar agora”.

Contudo, para o tempo da autocrítica chegar, eles deveriam aceitar que o melhor governo não é aquele que repete compulsivamente que fizemos tudo certo, mesmo que tudo tenha dado errado.

O melhor governo é aquele que reconhece o caráter falível de suas ações e a necessidade de revê-las a partir de suas consequências. Segurança ontológica não existe em política e saber disso é a única maneira de ser realmente fiel ao que realmente conta.

Porém, o mais interessante nesse tipo de pensamento é o que acontece quando são criticadas as opções de governo, como essas que foram feitas nos nossos últimos anos de democracia formal, já que democracia agora não há, nem mesmo em sua versão formal.

Se você insiste nas consequências catastróficas das opções gradualistas e conciliatórias que marcaram nossos últimos anos, a acusação imediata será a de “voluntarismo político”. Afinal, dizem, você acha que é simplesmente tendo vontade que se produzem transformações em um país como o Brasil?

O que eu particularmente mais gosto nesses tipos de afirmações é seu tom de reprimenda paterna.

Lembra o pai que, de forma impaciente, volta-se contra o filho e diz: “Mas você não sabe nada do mundo, a realidade é muito mais complexa. Você verá como o curso das coisas quebrará a petulância da sua vontade”.

Há muito mais “pais de plantão” do que imagina sua vã filosofia. Afirmações como essas, todavia, são um boa maneira de expor não exatamente o onirismo do filho, mas a impotência do pai, ou melhor, sua tentativa de travestir a impotência com as vestes da sabedoria. Algo muito comum entre nós atualmente.

Mais honesto seria começar por lembrar como esquecemos, nestes últimos anos, de um princípio elementar: nada pode ser transformado se as estruturas políticas permanecem as mesmas.

A primeira coisa a fazer quando aqueles comprometidos com transformações profundas assumem o poder é exatamente modificar o poder, e não tentar operar aceitando suas regras explícitas e, principalmente, implícitas.

Mas aqueles de boa memória lembrarão que a primeira ação da esquerda brasileira no poder foi, pasmem, uma reforma previdenciária, e não uma refundação da institucionalidade política brasileira. Sequer discussão séria e pressão política houve nesse sentido.

Falar em correlação desfavorável de forças em governos que chegaram a ter impressionantes 80% de popularidade é algo da ordem da desonestidade intelectual. Creio que isso, na verdade, diz muito a respeito do que os defensores da “autocrítica depois” ou da “autocrítica tudo bem, mas de leve” talvez realmente queiram, porém sem saber. Talvez eles queiram, atualmente, apenas que tudo volte a ser como antes. Difícil imaginar que se vai muito longe assim.