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*Artigo da escritora e roteirista Tati Bernardi, publicado originalmente na Folha de São Paulo.

Ontem vi um rapaz que muito me agradou na padaria próxima a minha residência e pensei: óbvio que ele vai cruzar olhares sedutores comigo. Sou gata, sou poderosa, sou loira falsa.

Pensei também: óbvio que ele vai adorar ter seus mamilinhos másculos e sua bundinha musculosa encarados pelo meu deleite. Quem, em sã consciência, não ficaria lisonjeado com o meu desejo? Ou ainda: que jovem heteronormativo não imploraria, enquanto escolhe um iogurte com “dan regulares”, pra ser patolado por uma desconhecida?

O moço preferiu escolher pães doces a notar minha existência e eu, não podendo conter a fúria de ser ignorada, tampouco controlar a verdade mamífera que brotava violenta em meu palato, bradei, pra quem quisesse ouvir: “VIADO”! Foi legal ter dito isso? Não. Me arrependo? Muito. Eu errei. Mas estava imersa em meu personagem de colunista fêmea branca opressora, espero que entendam. Não era eu, era o meu eu-lírico.

A culpa não é minha e sim da minha geração. Minha avó, que Deus a tenha, me ensinou desde muito cedo: podendo esmagar sacos escrotais pela vizinhança ou ainda dar dedadas anais pelo bairro, não se reprima! Os homens adoram. Eles só saem de casa usando camisas com alguns botões semiabertos e um tantinho da cueca aparecendo porque QUEREM justamente que alguém lhes torça o pênis, eles não só desejam desesperadamente que uma desconhecida lhes atoche uma unha vermelha e comprida, como MERECEM que isso aconteça.

Minha mãe, vendo-me tantas vezes sugar minha própria saliva em desmedido prazer, com a cabeça pendurada pra fora do meu carrão, buzinando para (e bolinando em pensamento) os universitários no ponto de ônibus, apenas sorria e balançava a cabeça: essa é fêmea! Ela nunca me ensinou que isso não se faz. Ela, sempre pude notar com muita clareza, sentia profundo orgulho: “Minha filha não é como essas sapatoninhas que andam por aí, essa é mulher de verdade”!

Ah, querido rapaz da padaria! Não foi apenas a minha mão direita que agarrou seu pênis e o espremeu até que você clamasse por socorro. Foi também a mão esquerda e uma infinidade de desculpas. Esmagar seu membro não foi invenção exclusiva de minha mente doentia. Foi a década em que nasci. Os avós que tive. Os pais que a vida me deu. As professoras de balé, professoras do primário. Tanta gente que você nem imagina. Eu te peço perdão, mas, se não bastar, reclame com quatro décadas e minhas tias.

No meu tempo era diferente. Eu fui criada pra achar que qualquer homem amaria ser grosseiramente acariciado em plena panificadora. Sou fruto de dezenas de gerações de mulheres que passaram adiante o que acabou se tornando um dos meus mantras: “Quando, no mercadinho, um homem abaixar pra pegar um engradado de cervejas, aproveite para conferir como ele fica de quatro e, se puder, sorva a língua com luxúria”. O que está acontecendo com o mundo que ninguém mais ri disso?

Estimado rapaz da padaria, um dia terei filhos. É esse mundo que eu quero pra eles? Não! Entendi, finalmente, que são tempos novos e melhores. Obrigada por tudo e desculpa qualquer coisa.