*Texto do filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, originalmente publicado na Folha de São Paulo nesta sexta-feira (03/03).
Há alguns dias, foi publicada a última pesquisa CNT/MDA para a eleição presidencial de 2018. Três fenômenos são dignos de nota: a ascensão de Lula, que venceria hoje em todos os cenários, a queda de todos os candidatos ligados de forma ou outra ao atual desgoverno e a consolidação do sr. Jair Bolsonaro em segundo lugar, em empate técnico com Marina Silva.
Um leitura mais detalhada da pesquisa revela fatos ainda mais surpreendentes. Bolsonaro é o candidato mais votado dentre aqueles que possuem ensino superior (20,7%) e aparece empatado com Lula na escolha dos que ganham acima de cinco salários mínimos (20,5%).
Já há algum tempo, o termo “fascista” é utilizado no embate político de forma meramente valorativa, e não descritiva. Ou seja, não se trata de descrever algum tipo específico de fenômeno político, mas simplesmente de desqualificar aquele que gostaríamos de retirar do debate político.
No entanto, há sim um uso descritivo do termo, há situações nas quais devemos nomear claramente o que, no final das contas, é a pura e simples adesão a práticas facilmente qualificadas como fascistas. Pois poderíamos dizer que todo fascismo tem ao menos três características fundamentais.
Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. Segundo, ele permite a circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e fragilizados. O ocupante desses grupos pode variar de acordo com situações históricas específicas. Já foram os judeus, mas podem também ser os homossexuais, os árabes, os índios, entre tantos outros. Por fim, ele procura constituir coesão social através de um uso paranoico do nacionalismo, da defesa da fronteira, do território e da identidade a eixo fundamental do embate político.
Neste sentido, não seria difícil demonstrar todo o fascismo ordinário do sr. Bolsonaro. Sua adesão à ditadura militar é notória, a ponto de saudar e prestar homenagens a torturadores. Não deixa de ser sintomático que pessoas capazes de se dizerem profundamente indignadas contra a corrupção reinante afirmem votar em alguém que louva um regime criminoso e corrupto como a ditadura militar brasileira (vide casos Capemi, Coroa-Brastel, Paulipetro, Jari, entre tantos outros).
Bem, quem começa tirando selfie com a Polícia Militar em manifestações só poderia terminar abraçando toda forma de violência de Estado.
Por outro lado, sua luta incansável contra a constituição de políticas de direito, reparação e conscientização da violência contra grupos vulneráveis expressa o desprezo que parte da população brasileira sempre cultivou, mas que agora se sente autorizada a expressar.
Por fim, o primarismo de um nacionalismo que expressa o simples culto do direito secular de mando, algo bem expresso no slogan “devolva o meu país”, fecha o círculo.
Ora, o fato significativo é que a maioria da classe média brasileira com sua semiformação característica assumiu de forma explícita uma perspectiva simplesmente fascista.
Ela operou um desrecalque, já que até então se permitia representar por candidatos conservadores mais tradicionais. Essa escolha é resultado de uma reação à “desordem” e à abertura produzida pela revolta de 2013.
Todo evento real produz um sujeito reativo, sujeito que, diante das possibilidades abertas por processos impredicados, procura o retorno de alguma forma de ordem segura capaz de colocar todos nos seus devidos lugares. Nesse contexto, a última coisa a fazer é acreditar que devemos “dialogar” com tal setor da população.
Faz parte de um iluminismo pueril a crença de que o outro não pensa como eu porque ele não compreendeu bem a cadeia de argumentos.
Logo, se eu explicar de forma pausada e lenta, você acabará concordando comigo. Bem, nada mais equivocado. O que nos diferencia é a adesão a forma de vida radicalmente diferentes. Quem quer um fascista não fez essa escolha porque compreendeu mal a cadeia de argumentos. Ele o escolheu porque adere a formas de vida e afetos típicos desse horizonte político. Não é argumentando que se modifica algo, mas desativando os afetos que sustentam tais escolhas.
De toda forma, há de se nomear claramente o caminho que parte significativa dos eleitores tomou. Essa radicalização não desaparecerá, mas é embalada pelo espírito do tempo e suas regressões. Na verdade, ela se aprofundará. Contra ela, só existe o combate sem trégua.