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Texto o filósofo, professor da USP e militante do PSOL Vladimir Safatle, originalmente publicado no site da Folha de São Paulo no dia 7 de outubro.

É possível que um dos saldos desta última eleição seja um deslocamento importante do eixo da política brasileira. Durante toda a Nova República, esse eixo esteve encarnado na política paulista. São Paulo viu nascer os dois movimentos mais expressivos responsáveis pela gestão do poder nos últimos vinte anos.

Primeiro, foi em São Paulo que as grandes greves do ABC redundaram em uma aliança composta por sindicalistas, intelectuais e igreja progressista que coordenou o processo hegemônico da esquerda brasileira sob o PT. Tal processo certamente entrou em colapso com a eleição –ao menos se pensarmos o PT como força hegemônica capaz de produzir políticas de transformação.

Haddad era a última grande aposta do PT, mas pilotou uma prefeitura com baixos índices de aprovação durante três anos e sequer foi capaz de chegar ao segundo turno. Não esperem autocrítica deste processo, já que muito parecem ter se acostumado à limitação do horizonte de expectativas que a última prefeitura do PT representou.

Segundo, foi em São Paulo que nasceu o PSDB –de uma divisão no antigo PMDB provocada pelo controle de Orestes Quércia sobre o partido. Com inspiração inicial social-democrata e com sua aliança de intelectuais, antigos políticos que fizeram a oposição ao regime militar e grandes operadores da economia nacional, o PSDB volta à Prefeitura de São Paulo para enterrar, com chave de ouro revestida de diamante e toques de porcelana Luís 14 falsa, seu próprio ciclo.

A eleição do sr. João Doria é uma dessas piadas que só situações terminais são capazes de produzir.

Implodindo seu próprio partido, com processos nas costas sobre abuso de poder econômico, esse personagem –frequentador de negócios obscuros com verbas públicas, de socialites caricatas e de programas do Amaury Jr.– representa o coroamento da miséria do projeto do sr. Alckmin.

A sobrevida do governador é a prova mais cabal de como o Tucanistão gosta de quem tem processos do Metrô correndo nos tribunais da justiça da Suíça e da França, de quem é suspeito de casos de corrupção com a merenda escolar e cuja incompetência provoca racionamento de água, fecha escolas, deixa universidades à míngua, espanca professores e tem índices sociais pífios.

Não espere daí nenhum novo ciclo de projetos nacionais.

Na verdade, o fato novo desta eleição ocorre no Rio de Janeiro. Pois é no Rio que vemos um dos embates que, provavelmente, darão a tônica nos próximos anos.

De um lado, a candidatura de um pastor evangélico representante da ala mais bem organizada deste movimento, a saber, a Igreja Universal do Reino de Deus. O crescimento de seu partido na última eleição, o PRB, é consistente (48% a mais de voto).

Diferentemente de seu “irmão na fé”, o PSC, o partido da Universal não comunga com o conservadorismo belicista e tosco que não teme em se apoiar nos amantes da ditadura militar.

Na verdade, o PRB é um efeito colateral do lulismo, pois cresceu nas hostes do governo –o ex-vice-presidente José Alencar (1931-2011) foi um dos seus fundadores–, aprendeu a manusear a lógica da assistência, a esconder melhor seu conservadorismo e sua dinâmica teológico-política. Por isso, tem e terá muito mais densidade eleitoral.

Do outro lado, temos uma das mais impressionantes experiências políticas dos últimos tempos no Brasil. Marcelo Freixo conseguiu federar um movimento de militantes, jovens e intelectuais único no Brasil atual, que se impôs como alternativa incontornável mesmo com apenas 11 segundos na televisão e nenhum dinheiro.

Com mobilizações de rua, comícios e discussões contínuas para a elaboração de plano de governo, esse movimento tem uma dinâmica que há muito havia desaparecido da esquerda brasileira.

Ele traz novas pautas, entre elas a constituição de mecanismos de democracia direta, a defesa radical dos direitos humanos e o fortalecimento dos serviços públicos.

Sua lógica é a de uma mutação das formas de governo, e não de adequação aos modos atuais de governabilidade. Em um momento em que a esquerda brasileira parece fechar um ciclo, o sucesso da experiência capitaneada por Freixo indicará o caminho pelo qual ela poderá se reconfigurar.