Artigo de Carla Ferreira
Jornalista, Dra. em História e vice-coordenadora do Núcleo de História Econômica da Dependência Latina-Americana – HEDLA/UFRGS
Cobertura Universal de Saúde, um nome aparentemente inofensivo que oculta um plano perigoso de ajuste estrutural contra trabalhadores e usuários. No Brasil, tudo indica que essa proposta começou a ser posta em prática no apagar das luzes de 2014, quando a Câmara de Deputados aprovou a Medida Provisória 656 autorizando a entrada de capital estrangeiro no setor, antes proibida pela Lei 8.080/90.
Faltam cerca de R$ 50 bilhões de reais por ano à saúde no Brasil¹. Nosso país gastou em média 9,2% do PIB com saúde entre 2000 e 2001, segundo os últimos dados publicados pelo Ministério da Saúde². É um valor baixo. Praticamente a metade do que investe os Estados Unidos e menos do que França e Alemanha. É baixo também em relação ao que estabelece a Constituição Federal de 1988 e os 12% do PIB propostos pela Emenda Constitucional Nº 29 — que a bancada do governo no Congresso não aceita porque exige a aprovação simultânea de um outro projeto definindo uma nova fonte de recursos para substituir a Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (a CPMF, que, aliás, enquanto vigorou, não foi destinada para a saúde). O problema é que a alegada falta de recursos públicos pode se converter em justificativa para o governo brasileiro ceder às pressões do setor privado, como vem defendendo o organismo das Nações Unidas (ONU) para a saúde, a OMS.
Um forte indício de que as ideias privatizadoras defendidas pela OMS já andam circulando nos gabinetes de Brasília foi a aprovação, no final de dezembro de 2014, da MP 656. Segundo o texto aprovado, hospitais públicos e privados poderão abrir-se ao capital estrangeiro. Quer dizer, agora os hospitais brasileiros podem ser adquiridos por fundos privados estrangeiros que exploram o “negócio” da saúde mediante o lançamento de ações nas bolsas de valores de todo o mundo em busca de rendas elevadas, em negócios de risco. O que eles não dizem é que o maior risco é para a população usuária desses hospitais ou serviços.
A inspiração da nova legislação brasileira deve ser buscada na sede da OMS, em Genebra, na Suíça, e seu projeto de Cobertura Universal de Saúde. A diretora-geral da Organização, Margaret Chan, diz que a proposta tem por objetivo dar proteção financeira aos mais pobres. Porém, especialistas brasileiros, como o Professor Luiz Facchini (UFPel), advertem que a proposta esconde atrás de si o entendimento de que o direito à saúde pública deve ser restringido. Essa também é a opinião da Associação Latino-Americana de Medicina (Alames) para quem a proposta de Cobertura Nacional da Saúde segmenta a população de acordo com seu poder aquisitivo, restringindo os investimentos públicos ao atendimento apenas da parcela mais vulnerável da população, deixando o restante da sociedade entregue a planos privados³.
A adesão da OMS a uma proposta como a Cobertura Nacional da Saúde deve-se aos financiamentos de fundações privadas que a Organização depende para sobreviver desde o final dos anos 1990. Atualmente, cerca de 76% dos seus recursos provém de doações voluntárias deste tipo de fundação privada. Esse fato é o que explica a redução da liberdade da OMS para defender políticas equitativas de saúde, analisa o historiador Marcos Cueto, da Casa Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Além disso, a influência do Banco Mundial na OMS tem feito com que governos de países endividados aceitem a proposta como uma forma de obter recursos internacionais, indica o pesquisador.
Há quem pense que privatizar a saúde pode ser uma solução para o subfinanciamento e para melhorar o atendimento de saúde oferecido pelo SUS à população. A realidade, porém, é outra. Em 2014, 54,3% dos recursos aplicados em saúde já foram privados, contra 45,7% que tiveram origem pública. Isso não representou melhora na prestação dos serviços em geral. Ao contrário, só neste mês de fevereiro de 2015, a Agência Nacional de Saúde suspendeu a comercialização de 70 planos de saúde privados por descumprimento de prazos máximos para atendimento ou negativas indevidas de coberturas.
Por isso, os trabalhadores da saúde e a sociedade em geral que, em Junho de 2013, clamaram por uma saúde Padrão FIFA devem estar alertas para esse risco de mais um ataque ao SUS, agora disfarçado de ajuda aos mais pobres. A Cobertura Nacional da Saúde e a abertura do setor ao capital estrangeiro são, na verdade, uma estratégia das grandes empresas privadas do setor farmacêutico e das gestoras de fundos de investimentos de elevação de seus lucros explorando a saúde da população. E nisso estão sendo apoiadas pela OMS e encontrando representantes eficientes no governo e no Congresso brasileiros. Aliados, os políticos e empresários do setor querem excluir grande parte da população do seu direito inalienável à saúde garantido pela Constituição brasileira e pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade que fazem do SUS um sistema com bases democráticas pelos quais é preciso lutar para preservar e ampliar.
¹ Fonte: A informação é do ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, em entrevista ao Valor Econômico Setorial Saúde, publicada em agosto de 2014.
² Fonte: World Health Statistics, 2014.
³ Ver reportagem especial publicada pelo jornal Brasil de Fato, edição dos dias 11 a 17 de dezembro de 2014.