A Comissão da Verdade aprovada ontem não atende aos parâmetros internacionais de independência, idoneidade e transparência na seleção dos seus membros. Eles serão escolhidos arbitrariamente pela Presidente da República, sem nenhuma participação da sociedade. Manifesto intitulado “Mudar o PL 7.376 para que a Comissão da Verdade apure
os crimes da Ditadura Militar com autonomia e sem sigilo” assinado por milhares de pessoas, dentre elas vítimas, familiares de vítimas da ditadura, artistas e defesansores dos direitos humanos, apelou ao Senado pela mudança do projeto de lei pois, como dizia o manifesto, “o texto atual do projeto estreita a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes, negando-lhe orçamento próprio; desvia o foco de sua atuação ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988!), extrapolando assim em duas décadas a já extensa duração da Ditadura Militar; permite que militares e integrantes de órgãos de segurança sejam designados membros da Comissão, o que é inaceitável.Além disso, o texto atual do PL 7.376/2010 impede que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes, para que estas promovam a justiça.”
Mas nada foi modificado no Senado, nem sequer uma questão básica: a imunidade para as testemunhas que depuserem na Comissão, deixando-as à mercê de processos por “danos morais” a serem eventualmente promovidos por aqueles que forem aponatados como torturadores. Isto já ocorreu aqui no Rio Grande do Sul.
Além disso o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Diretos Humanos, em cuja Sentença a Corte afirma:
“Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte considera que se trata de um mecanismo importante, entre outros aspectos, para cumprir a obrigação do Estado de garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Com efeito, o estabelecimento de uma Comissão da Verdade, dependendo do objeto, do procedimento, da estrutura e da finalidade de seu mandato, pode contribuir para a construção e preservação da memória histórica, o esclarecimento de fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados períodos históricos de uma sociedade392. Por isso, o Tribunal valora a iniciativa de criação da Comissão Nacional da Verdade e exorta o Estado a implementá-la, em conformidade com critérios de independência, idoneidade e transparência na seleção de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e atribuições que lhe possibilitem cumprir eficazmente com seu mandato. A Corte julga pertinente, no entanto, destacar que as atividades e informações que, eventualmente, recolha essa Comissão, não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais”
A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, prolatada em 24 de novembro de 2010, condenou o Brasil por violações dos direitos humanos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, devido aos acontecimentos no episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia. Uma das mais importantes determinações da Corte é o dever do Brasil conduzir eficazmente a investigação penal para esclarecer as responsabilidades pelos desaparecimentos forçados de 70 guerrilheiros e impor as respectivas sanções penais. Para a Corte, a lei de anistia brasileira não pode constituir-se como um obstáculo no cumprimento deste dever.
Com o intuito de “promover o debate sobre o tema e levar ao conhecimento do maior número de pessoas, coletivos e instituições a necessidade de exigirmos do Estado brasileiro uma posição clara e coerente em direitos humanos” , uma campanha intitulada “CUMPRA-SE” vem sendo impulsionada pela AJD – Associação Juízes para a Democracia, CJP-SP – Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, GTNM-SP – Grupo Tortura Nunca Mais – SP, entre outros. O manifesto da campanha denuncia que o governo brasileiro nega-se a cumprir “um dos principais aspectos da sentença, que é a desobstrução da justiça para que os crimes de lesa-humanidade apontados sejam investigados e os responsáveis punidos(…).”
Em dezembro de 2011 nova audiência da Corte Interamericana deverá avaliar o progresso do Brasil no cumprimento da Sentença. Tudo indica que a intenção do Estado brasileiro é utilizar-se da implementação da Comissão da Verdade para demonstrar à Corte que está cumprindo a sua decisão. Ficará evidente a insuficiência desta medida pois é parte essencial da Sentença a persecução penal dos violadores. Além disso, no que diz respeito à Comissão da Verdade, nem mesmo as recomendação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos acerca das prerrogativas e características de uma Comissão como esta foram observadas pelo projeto do governo brasileiro, e portanto, mesmo que ela ocorrra o Brasil ainda estará muito aquém dos seus vizinhos latino americanos no que diz respeito às medidas que integram os princípios da Justiça de Transição e na realização plena da Justiça e da Verdade.
Sobre a obrigatoriedade do Brasil cumprir a Sentença da Corte, cabe ressaltar que o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992. O próprio STF já reconheceu o status supra legal dos Tratados de Direitos Humanos, e no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos não há jamais que se falar em prevalência de uma norma interna sobre outra internacional, se a segunda é mais ampla em termos de garantias aos direitos da pessoa humana. Além disso o Brasil reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte em 1998. Ao fazer isto o Brasil atribui a ela a legitimidade para realizar o controle de convencionalidade, isto é, auferir a compatibilidade das normas internas – todas elas, inclusive as constitucionais – com os textos internacionais de direitos humanos. Ao reconhecer a jurisdição da Corte, os Estados comprometem-se a aceitar suas decisões, reconhecem-nas como obrigatórias e de pleno direito. Os efeitos das suas sentenças são os mais amplos possíveis no âmbito de uma ação de responsabilidade internacional, vinculando as partes em litígio, assegurando o cumprimento do direito violado e estabelecendo reparações às vítimas.
Portanto o Brasil tem que cumprir a Sentença da Corte que diz: “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.