Foto: Ted Eytan/CC
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Um diálogo com o livro recente de Nancy Fraser

Por Luciana Genro – originalmente publicado na Revista Movimento

Em “O velho está morrendo e o novo não pode nascer” (autonomia literária, 2020), Nancy Fraser apresenta um panorama da política norte americana que me parece ser muito útil aos nossos debates sobre balanço e perspectivas da esquerda brasileira.

Partindo da constatação de que atravessamos uma crise política global que envolve o enfraquecimento brutal da autoridade dos partidos e do establishment político e que, portanto, há uma busca por novas ideologias, organizações e lideranças, Fraser aponta a existência de uma crise de hegemonia. Simplificando o conceito desenvolvido por Antonio Gramsci, hegemonia “é o termo que ele usa para explicar o processo pelo qual uma classe dominante faz com que sua dominação pareça natural ao infiltrar pressupostos de sua própria visão de mundo como sendo o senso comum da sociedade.” (p. 35)

A contrapartida organizacional da construção da hegemonia é a constituição de um bloco hegemônico, isto é, “uma coalizão de forças díspares que a classe dominante reúne e através dela afirma sua liderança.”

O bloco hegemônico pré-Trump era o que Fraser chama de “neoliberalismo progressista”, uma aliança entre correntes liberais do feminismo, da luta antirracista, do ambientalismo, da luta LGBTQ+, com os setores financeiros e de ponta da economia norte americana, isto é, Wall Street, Vale do Silício e Hollywood.

Para entender esta aliança é preciso se apropriar de dois conceitos utilizados por Fraser: distribuição e reconhecimento.

Distribuição é a visão sobre como a sociedade deve alocar os bens, especialmente os rendimentos, a riqueza. Está diretamente relacionada com a estrutura social e a divisão de classes. O reconhecimento expressa a forma de como a sociedade reparte o respeito e a estima, as marcas morais de pertencimento. Está relacionado com as hierarquias dos status sociais.

Segundo Fraser, a combinação destes dois aspectos de direito e justiça forjou a hegemonia capitalista nos Estados Unidos e na Europa desde a metade do século XX. Para ela, distribuição e reconhecimento são os “componentes essenciais a partir dos quais as hegemonias são construídas” (37) e foi o descrédito do nexo normativo entre eles que rompeu o bloco hegemônico anterior a Trump e possibilitou o surgimento do “trumpismo”.

Esse bloco hegemônico “progressista – neoliberal” tinha como eixo de sua política econômica desmantelar barreiras e proteções à livre circulação do capital. Essa linha, iniciada por Ronald Reagan e aprofundada e consolidada por Clinton, provocou uma redução brutal do padrão de vida da classe trabalhadora e da classe média e transferiu riqueza para os de cima, inclusive para os altos escalões das classes profissionais gerenciais. Junto com esta política plutocrática veio “um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. No centro deste ethos estavam os ideais de diversidade, empoderamento das mulheres, direitos LGBTQ+, pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo. Esses ideais foram interpretados de uma maneira específica e limitada, totalmente compatível com a ‘Goldman Sachsificação’ da economia dos EUA”. (39)

O antagonista deste bloco hegemônico do neoliberalismo progressista era o neoliberalismo reacionário. Sua política de distribuição era similar, embora seus discursos afirmassem defender os pequenos negócios, seu objetivo era o fortalecimento das finanças, da produção militar e da energia não renovável. O que o diferenciava do neoliberalismo progressista era a sua visão do que seria uma ordem de status mais justa:  racista, patriarcal, homofóbica, anti-imigrante e pró-cristã. Suas diferenças mais importantes estavam no campo do reconhecimento e não da distribuição.

Fraser define que “a hegemonia tem a ver com a autoridade politica, moral cultural e intelectual de uma determinada visão de mundo – e com a capacidade desta visão de mundo de se incorporar em uma aliança durável e poderosa de forças sociais e classes sociais. O neoliberalismo progressista desfrutou desta hegemonia por várias décadas. Agora, no entanto, sua autoridade está severamente enfraquecida, se não completamente despedaçada.” (76)

Esta polarização entre dois modelos que do ponto de vista econômico são muito semelhantes deixou órfãos as vítimas da financeirização e da globalização corporativa em “uma zona vazia e desocupada, onde a política antineoliberal e em favor das famílias trabalhadoras poderia ter se enraizado.” (46) É o que Fraser chama de “lacuna hegemônica”. (45)

Quando Barack Obama surge no cenário político, em meio à pior crise financeira desde a Depressão, alguns acharam que ele poderia preencher este vazio: “Barack Obama poderia ter aproveitado a oportunidade para mobilizar seu apoio de massas em favor de um grande deslocamento para longe do neoliberalismo, mesmo diante da oposição do Congresso. Em vez disso, ele confiou a economia às próprias forças de Wall Street que quase a haviam destruído.” ( 46)

Expressão desta lacuna foi o movimento Occupy Wall Street, em 2011. Um descontentamento que não encontrava interlocutores na política institucional irrompeu e acabou, segundo Fraser, servindo principalmente para reeleger Obama em 2012, mas também prenunciando um terremoto que estava por vir. A frustração e a crise de representatividade seguiram, os dois blocos neoliberais colapsaram e o “terremoto finalmente abalou a corrida eleitoral de 2015-2016, quando o descontentamento prolongado transformou-se, de repente, em plena crise de autoridade política.” (48)

O resto da história é bem conhecida, com Bernie Sanders encarnando o anti establishment pela esquerda e Trump pela direita. Fraser define estes dois fenômenos como populismo reacionário e populismo progressista, utilizando o termo “populismo” no sentido de uma política com apelo popular, sem a conotação pejorativa que lhe é atribuída no Brasil[1].

Ambos criticavam a política neoliberal de distribuição, mas suas políticas de reconhecimento eram opostas. Universalismo e igualitarismo versus nacionalismo e protecionismo. A base social que Trump disputou era branca, hétero, cristã, uma classe trabalhadora tradicional que havia perdido espaço, prestígio e dinheiro. E estava furiosa.

Mas Trump foi, pelo menos em parte, um estelionato eleitoral. Ele abandonou a política “populista” de distribuição e dobrou a aposta na política reacionária de reconhecimento, constituindo assim um “neoliberalismo hiper-reacionário”. (53)

Mas Trump não constituiu um novo bloco hegemônico. Sua derrota eleitoral em 2020 confirma a tese de Fraser:

“Ao desativar a face econômico–populista de sua companha, o neoliberalismo hiper-reacionário de Trump busca restabelecer a lacuna hegemônica que ele ajudou a abrir em 2016 – exceto que ele não pode, agora suprimir essa lacuna. Agora que o rei populista está nu, parece duvidoso que a parcela da classe trabalhadora da base de Trump fique satisfeita, por muito tempo, apenas com uma dieta de (des) reconhecimento.” (54)

Escrito em 2019, e inserido no esforço de apoio a Bernie Sanders para representar o Partido Democrata nas eleições, o texto de Fraser contém um vaticínio preciso: as políticas de reconhecimento que se desconectam com o eixo da justiça distributiva servirão aos esforços para “restaurar o status quo anterior sob alguma nova forma. Nesse caso, o resultado seria uma nova versão do neoliberalismo progressista.” (55) A vitória de Joe Biden e Kamala Harris se encaixa precisamente neste conceito, o que não quer dizer, em hipótese alguma, que a derrota de Trump não tenha sido uma grande vitória.

A narrativa de Fraser sobre a situação e os impasses da política norte-americana tem particularidades que são próprias ao país. Entretanto, há muitos pontos de contato com a situação mundial em geral e com a situação brasileira em particular.

Se olharmos para o Brasil de Fernando Henrique Cardoso podemos visualizar claramente o neoliberalismo progressista de Clinton (nem tão progressista quanto o norte-americano, por razões óbvias), assim como as esperanças despertadas e frustradas por Obama podem ser identificadas com aquelas despertadas por Lula e desmoronadas com as consequências da crise econômica sob Dilma Roussef. O significado do movimento Occupy Wall Street tem paralelo no levante de junho de 2013, que destapou o descontentamento, deixou paralisada a maior parte da esquerda e abriu uma caixa de pandora que desaguou em Bolsonaro. O paralelo entre Trump e Bolsonaro é bastante óbvio.

As eleições municipais demonstraram que Bolsonaro está longe de fechar a crise de hegemonia aberta principalmente com a falência do petismo e sua política de conciliação de classes. Demonstraram também a força que ganhou a pauta antirracista e a consolidação das mulheres e LGBTs como atores políticos importantes.

 A crise de hegemonia segue aberta e nada garante que seu desenlace será semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos, com um reestabelecimento do neoliberalismo progressista. Há muitas variáveis em aberto, que vão desde a possibilidade de um impeachment de Bolsonaro – se as elites políticas concluírem que para superar a crise econômica agravada pela pandemia será preciso removê-lo do cargo – até sua permanência com consequências eleitorais ainda difíceis de antever.

Nas eleições norte americanas, após a luta por Bernie Sanders todos se uniram a Joe Biden para derrotar Trump. Não é possível descartar que algo semelhante venha a ocorrer no Brasil.  A derrota de Trump foi um acontecimento de grande magnitude, justamente por ele representar, assim como Bolsonaro no Brasil, uma tentativa hiper-reacionária de encerrar a crise de hegemonia, fechando também as brechas por onde se expressam os movimentos sociais mais progressistas e acabando com as liberdades democráticas e as conquistas civilizatórias tão duramente arrancadas. A tarefa do PSOL não é menor diante deste cenário.

Gramsci nos ensina que nesta crise em que  o velho já morreu e o novo ainda não pode nascer, há um interregno no qual  surgem “fenômenos patológicos” dos mais variados tipos[2]. Estes fenômenos estão por toda parte. Nos Estados Unidos o maior dos últimos tempos suponho tenha sido a ocupação do Capitólio por milícias trumpistas, um gesto de desespero diante da derrota,  mas também uma senha  sobre os métodos que a extrema direita está disposta a utilizar no mundo todo.

No  dia a dia do Brasil vemos o vigilante de supermercado, super explorado, que espanca um homem pobre e negro até a morte; o policial, com o colete a prova de balas vencido, que mata um jovem negro ao confundi-lo com um assaltante; o homem branco, desempregado há seis anos, que mata a ex-mulher na frente das filhas; o macho, frustrado com sua sexualidade reprimida, que espanca a travesti por odiar desejá-la. Exemplos de algozes cruéis que também, em alguma medida, são vítimas de um sistema que está podre, mas não vai cair sozinho. Faltam uma visão programática e uma perspectiva organizacional. Um programa anticapitalista que englobe as demandas por distribuição e reconhecimento e uma organização que possa levar adiante a luta por este programa.

Uma conclusão se ilumina com o texto de Fraser, guardadas as diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos: a necessidade de buscar a construção de um novo bloco contra-hegemônico, que una todos os que resistem aos ataques de Bolsonaro. Este bloco deve lutar para conquistar também setores populares que votaram nele em 2018 – não por ele ser racista, misógino e homofóbico, mas apesar de ele ser assim – e que estavam em busca de uma representação para suas esperanças de pertencimento e inclusão dizimadas pela crise econômica que se arrasta desde 2008 e que ganhou novo impulso com a pandemia.

Para fazer isso é preciso destacar as raízes comuns das injustiças de classe e do status no capitalismo, fazendo a conexão entre as pautas de reconhecimento e distribuição. Não é possível tratar da luta antirracista sem revelar o entrelaçamento entre raça e classe, assim como nossa luta pelos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQ+ não é apenas para buscar diversificar a ordem social existente, dando mais representatividade a um sistema político e econômico que se beneficia das mais diversas formas de opressão para aumentar a exploração.

É preciso buscar um novo bloco contra-hegemônico que tenha a classe trabalhadora como força dirigente. Mas esta classe, como descreve Fraser, não pode ser “restrita a uma maioria étnica branca de homens heterossexuais, trabalhadores de manufatura e da mineração”, segmento que alimentou o trumpismo nos Estados Unidos e que encontra seu paralelo no Brasil nos setores mais atrasados da classe trabalhadora que apoiaram Bolsonaro.

Esta classe trabalhadora com capacidade de ser o eixo do novo bloco contra-hegemônico deve ser vista de forma “interseccional”, englobando massivamente imigrantes, mulheres e negros, trabalhadores precarizados, entregadores e trabalhadoras domésticas (remuneradas ou não). Os sindicatos são fundamentais, se puderem se reinventar e recuperar sua representatividade e liderança, englobando os novos segmentos ainda desorganizados. Esse bloco poderá também se tornar a força dirigente capaz de atrair a juventude, a comunidade LGBTQ+ e os setores mais empobrecidos da classe média. O desafio do PSOL é ser uma força organizacional que tenha capacidade de impulsionar, e quiçá liderar, a formação deste bloco.


[1] Mais sobre o tema populismo neste sentido ver MOUFFE, Chantal. Por um populismo de esquerda, editora Autonomia Literária, 2020.

[2] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol 3. 2ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 184

Luciana Genro é advogada. É deputada estadual (RS), fundadora e dirigente do PSOL e do Movimento Esquerda Socialista (MES). Foi candidata à Presidência da República em 2014.