Artigo de Silvio Almeida, Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama, originalmente publicado na Folha de São Paulo em 08/01/21.
Ainda que figuras como Trump e Bolsonaro tenham responsabilidade individual em todas as tragédias que os cercam, é preciso entender que tipo de mundo permite que homens como eles sejam alçados ao poder. Considero que uma análise da conjuntura política requer a observação do cenário, não somente dos atores.
Nesta quarta (6) assistimos à tentativa de invasão do Congresso dos Estados Unidos por apoiadores do presidente Donald Trump. É um erro achar que foi a voz de Trump o único fator a influenciar as ações dos invasores. As pessoas que ali estavam são constituídas e guiadas pelos espectros de escravocratas, linchadores e racistas que nunca foram banidos da vida americana.
Essa presença fantasmagórica é institucionalmente reafirmada nos monumentos, nas leis, na cultura, na economia e na politica interna e externa dos Estados Unidos. Parece que o que se chama de “democracia americana” existe, não apesar, mas justamente porque foi erigida sobre um pântano de fascismo, racismo e desprezo pela vida.
Se a institucionalidade serve como uma tampa de bueiro, a decomposição provocada pelo capitalismo em crise provoca fissuras sociopolíticas que trazem os detritos à superfície. Com efeito, a cena de um homem segurando a bandeira dos confederados dentro do Capitólio é marca desse refluxo dos esgotos da história americana. Presenciamos um grupo de pessoas brancas afogadas em ressentimento e desesperança, inconformadas com a perda das vantagens raciais que tinham, primeiro com a escravidão e, mais tarde, com a segregação racial. Como escreveu William Faulkner em “O Som e a Fúria”, no contexto do fim da escravidão no Sul dos Estados Unidos, “não há tempo no mundo que não seja desespero, nem mesmo o tempo é tempo antes de ter sido”.
É inócuo também dizer que se tratam de “fracassados”. Isso, na verdade, só ajuda a reforçar a ideia de que os indivíduos são os únicos responsáveis pelo que ocorre em suas vidas, até pelas doenças que contraem. Na verdade, muitas daquelas pessoas que invadiram o Capitólio se consideram injustiçadas, autênticos guerreiros na luta pela correção de um mundo que foi corrompido pelos esquerdistas e pelas minorias.
Considerando esse estado de coisas é que temos que olhar para o Brasil. Não devemos esperar que no país dos golpes, das ditaduras e da escravidão mal resolvida as pessoas se comovam com os 200 mil mortos pela Covid-19, se indignem com a incompetência dos Ministérios da Saúde e da Economia, contem com a vergonha das Forças Armadas pelos atos de seu comandante-em-chefe ou mesmo se espantem com a insensibilidade do presidente da República.
O mundo da vida precária, do racismo, da pandemia e da violência é o ambiente natural de líderes como os do Brasil e dos Estados Unidos. Este é o “Bolsoverso”. Assim, não é o presidente que está no lugar errado; nós é que estamos presos em seu mundo.
A oposição deve ter no horizonte que as eleições de 2022 vão ocorrer dentro do “Bolsoverso”. Quem acha que em um ano haverá um surto de sanidade geral que levará a oposição ao poder é porque provavelmente não entendeu que o atual governo é contradição, caos e desorientação.
Se não houver vacina, ele culpará alguém; se houver, dirá que foi graças a ele. Não faz sentido?
“E daí”, será a resposta. Portanto, para vencer —e levar— as eleições de 2022 será preciso desmantelar o “Bolsoverso”, o que implica pensar a politica para além do calendário eleitoral e fora dos limites estreitos da lógica institucional.