O Brasil prepara-se, neste ano, para enfrentar algo parecido a uma eleição presidencial. O país procura dar a si mesmo a impressão de certa normalidade ao conservar as eleições, mas a verdade é bem diferente.
Completamente à deriva, com uma classe política que opera como máfia, com o fantasma de um poder militar pairando acima das forças civis, com uma sociedade organizada em regime de castas, o país oferece o espetáculo deprimente de uma democracia fracassada que nenhuma eleição poderá redimir.
Toda e qualquer discussão política no Brasil precisa começar pela constatação de um impressionante fracasso: o país não foi capaz de produzir uma democracia minimamente viável depois do fim da ditadura militar (1964-85). No entanto, nós, brasileiros, temos uma capacidade impressionante de autoengano.
Há seis anos, se alguém falasse que a democracia brasileira era frágil e meramente aparente, seria tratado com um piromaníaco irresponsável.
O Brasil inventou para si a farsa de uma “transição pacífica” que conservou o núcleo político da ditadura dentro dos governos da Nova República, a farsa de uma “redemocratização” que nunca deu ao poder popular sua força institucional, a farsa de um “combate gradual contra a desigualdade” que conservou todos os benefícios das classes rentistas enquanto fornecia aos setores pobres da população empregos precários e de baixos salários.
A última coisa que precisamos é da farsa de uma eleição.
Por isso, as forças que estão realmente em revolta contra esse estágio de degradação nacional deveriam retirar de seu dicionário promessas de reforma política ou de pacto.
O Brasil é o exemplo mais bem-acabado de um país simplesmente ingovernável e esta impossibilidade de governo não vem de fatos como ausência de cláusula de barreira, fragmentação partidária ou coisas dessa natureza.
O Brasil é um país ingovernável porque o horizonte de pacto forçado e de conciliação extorquida que produziu a Nova República não existe, e nem existirá mais.
Diante dessa nova situação, só há dois caminhos possíveis. O primeiro já se anuncia. Ele passa pela clássica saída nacional a seus impasses, a saber, o apelo a um “poder forte” que pode levar o Brasil tanto a ser uma espécie de “Turquia soft” (ou seja, poder militar como elemento moderador e poder civil ocupado por “vice-presidentes decorativos”) quanto a retornar ao seu ciclo de intervenções militares diretas.
No entanto, há um segundo caminho e ele nunca foi tentado no Brasil porque até mesmo as ditas forças progressistas o temem (o que diz muito a respeito dos limites do “progressismo” brasileiro).
Ele passa por uma radicalização democrática inédita que implica a reinstauração da institucionalidade política nacional. A Nova República acabou e com ela deve ir embora seu aparato institucional e sua constituição.
O Brasil precisa de uma institucionalidade política que impeça que o poder seja tomado novamente de assalto por uma casta de políticos profissionais, que transfira os processos de decisão para fora do Estado por meio da proliferação de mecanismos de democracia direta, que esvazie a força discricionária do parlamento ao submeter suas decisões à confirmação de referendos populares.
Mas é claro como mesmo a esquerda brasileira tem medo de seu próprio povo. Não são poucos aqueles que sempre falam sobre a falta de educação do povo como impedimento para avanços na direção de uma democracia sem governo.
Eles deveriam lembrar que, no Brasil, quanto mais você é educado, maior a chance de você votar em Bolsonaro (que lidera as pesquisas no segmento com maior educação). O que é uma bela prova da falácia da equação educação formal/emancipação política.
Na verdade, há de se perguntar o que realmente temem esses que não querem dar um passo para fora da defesa da democracia parlamentar. Pois talvez uma sociedade realmente descontrolada seja o que muitos, cada um por sua razão, procuram a todo custo evitar. Mas ela seria a real condição para o Brasil abrir novos caminhos nesse momento.
Jornal Folha de São Paulo, 9 de março
Vladimir Safatle