Artigo de Joanna Burigo, fundadora da Casa da Mãe Joanna, mestre em Gênero, Mídia e Cultura e coordenadora da Emancipa Mulher, publicado originalmente na Carta Capital em 11/01/2018.
Nos Estados Unidos de Trump, 2017 começou com manifestação de mulheres e vai ficar marcado por suas denúncias de assédio em Hollywood. Mal começou o ano novo e o espírito dos tempos manifestou-se no Globo de Ouro. A cerimônia foi tomada por ações de poderosas que disseram time’s up para o machismo, e atingiu seu ápice quando Oprah Winfrey, no discurso de aceitação pelo prêmio mais importante da noite, estabeleceu: acabou esse tempo, é o fim de uma era, nós viramos a história.
Mal nos recuperávamos do Globo de Ouro e a avalanche de perspectivas fez uma curva intrépida ao esbarrar no estranho manifesto pelo direito de ser importunada, assinado por 100 francesas capitaneadas por Catherine Deneuve, e na coluna de Danuza Leão sobre a premiação.
Os argumentos dos dois textos, tão obsoletos que cheiram a mofo e naftalina, são um prato cheio de amostragens com recorte de raça e classe das (aparentemente abstratas e difíceis de entender) relações desiguais de poder. Por isso, embora tenham causado – justificadamente – volumes industriais de indignação e raiva, penso que podem ser bastante úteis.
Erro e equívoco
Vale analisar o discurso de Danuza Leão. A legendária cronista nos revela não ter clareza sobre o que é assédio, diz ser do tempo em que era ótimo passar por uma obra e receber um elogio, e que o Globo de Ouro pareceu um grande funeral. Ela não está errada. Mas como está equivocada…
Não é errado não saber definir assédio. Mas é um equívoco pensar que não exista quem saiba distinguir sedução de abuso, ou que o último resulte em denúncias porque isso está na moda. Elogio não é assédio e assédio não é elogio, e o que indica o que é um ou outro é abuso de poder. Uma coisa é um pretendente desajeitado ou um galanteio respeitoso, outra é tirar proveito de posições hierárquicas para manipular, chantagear, coagir e dominar.
Tampouco é errado alocar ao passado o tempo em que assédio era considerado normal. O equívoco é esperar que continue sendo aceitável. Não é. É abuso e, neste tempo, será desvelado.
A hashtag-título da manifestação glamorosa, #TimesUp, literalmente significa “o tempo acabou”. É um slogan, mas não um que surge do nada e leva a lugar nenhum. A ação foi orquestrada, congrega campanhas anteriores (#AskHerMore, #MeToo), e lançou um fundo para despesas legais direcionado a mulheres vítimas de assédio sexual no trabalho.
Além disso, os discursos foram ensaiados. Já na abertura Seth Meyers avisou que o evento estava fazendo 75 anos, só para que Jessica Chastain retrucasse: “Mas a atriz que faz sua esposa tem apenas 32”. Natalie Portman, apresentando os nominados para o prêmio de melhor direção, observou friamente que todos eram homens. Selvagem – mas faltou dizer que todos também eram brancos. (Ah, a conveniência.)
Laura Dern sugeriu que falar sobre opressões deve ser nosso Norte na criação de novos humanos, e Elizabeth Moss, recebendo o prêmio de melhor atriz pelo Conto da Aia (que também ganhou melhor série dramática, o que é bastante significativo), citou a autora Margaret Wood: “Estamos escrevendo, nós mesmas, a história”.
Quanto ao magnífico discurso de Oprah Winfrey, é claro que é válido questionar se não foi proselitismo em preparação para uma possível campanha presidencial. Mas mesmo que isso proceda, não invalida a potência de suas palavras, o alcance de sua voz, e a magnitude desta mulher excepcionalmente inteligente e bem-sucedida e o que ela representa num mundo que tenta, sistematicamente, aniquilar mulheres negras e suas produções.
Não é acidente que a maioria das ativistas que acompanharam as atrizes envolvidas na campanha não eram brancas. Talvez tenha sido jogada de marketing, mas é incontestável que mulheres negras, indígenas e trabalhadoras urbanas ou do campo estão na vanguarda das lutas por justiça, e me parece positivo que seus nomes, imagem e projetos inspiradores constem na cobertura do evento de luxo.
Marai Larasi (diretora do INKAAM, dedicada a combater violência sofrida por meninas negras), em entrevista no tapete vermelho apontou o muro de silêncio sobre violência contra mulheres complementando que falar é produzir rachaduras nele, e finalizou declarando que chamar atenção para assuntos que afetam mulheres mundo afora é bom uso do poder dessas atrizes.
Esse sentimento foi ecoado nas falas de Tarana Burke (criadora do movimento #MeToo e diretora sênior da ONG Garotas pela Equidade de Gênero), Rosa Clemente (ativista política porto-riquenha), Monica Ramirez (fundadora da Aliança Nacional de Camponesas) e Ai-jen Poo (diretora da Aliança Nacional de Trabalhadoras Domésticas), para citar algumas ativistas que abrilhantaram o evento.
Voltando a Danuza Leão e sua professa confusão, ao relacionar a decisão sartorial das atrizes com velório, ela novamente não erra e se equivoca ao não perceber que o objetivo era mesmo simbolizar o funeral da era de silêncio sobre abusos de poder. Foi significativo e elegante eleger a cor tradicional do luto ao invés de, sei lá, vermelho-protesto ou rosa-estereótipo.
As 100 francesas
Já o manifesto das francesas gerou acirrados embates visto que tocou num ponto nevrálgico: sexo. Existe muita confusão acerca do que demandamos, e elas se acentuam quando a pauta é esta. Foi Oscar Wilde quem satirizou que tudo é sobre sexo, menos sexo, que é sobre poder.
Sexo e dinheiro são searas em que a economia do poder circula de jeitos particularmente bestiais – e uma boa indicação disso no feminismo é a violência que perpassa os debates sobre trabalho sexual.
O manifesto é risível. Primeiro porque parece bastante óbvio que jogos de sedução calcados no machismo tenham caráter predatório, e embora a maioria das mulheres que conheço não queira ser caçada, o direito de desejarem isso não está em risco.
Segundo, porque é evidente que puritanismo e moralismo não são vistos exclusivamente nos feminismos – pelo contrário, por aqui vejo muito mais movimento em direção à libertinagem. De novo, somos desproporcionalmente acusadas de hábitos mais frequentemente vistos em movimentos antifeministas, como os que informaram proibições recentes de exposições de arte.
Terceiro, porque parte de uma prerrogativa infundada, cansada, paranoica, e que inadvertidamente revela nossos medos quando insistimos em interpretar o que não é dito. As fundamentais distinções entre estar vigilante frente a práticas opressivas e fazer vigilância do desejo dos outros, e entre expor abusos e policiar comportamentos, são nós cegos que precisam ser urgentemente desatados.
O manifesto teria mais utilidade se tensionasse o conceito de consentimento articulado aos obviamente existentes jogos ambíguos de sedução, ou servisse para vislumbrarmos um “novo normal” organizado a partir da prerrogativa de que mulheres têm pleno direito aos próprios corpos e são respeitadas ao dizerem não.
O que não dá é para confundir o desejo individual de viver livremente qualquer sexualidade com a liberação de práticas não consentidas. Essa, me parece, é a maior confusão que o manifesto causa.
Mas não a única: ao acusar o feminismo de fazer “caça às bruxas”, o texto inverte perversamente a lógica da expressão, que serve para denotar a perseguição de poderosos algozes por vítimas marginalizadas. A ideia de homens sendo perseguidos é uma inversão tão fantasiosa da realidade quanto o fetiche da elite por bater panelas.
Danuza, Deneuve et al são representantes da uma geração que lutou por liberdade sexual, e penso que talvez exista um elemento de, digamos, reacionarismo progressista em suas falas. “Lutamos por liberdade sexual, e agora feministas mais jovens querem cerceá-la?” Talvez seja esse o sentimento, não sei. Mas se for, não passa de outra confusão.
Todo respeito e gratidão às nossas antecessoras, que batalharam pelo direito de exercermos nossa sexualidade como bem quisermos. Mas o tempo não para e, neste, a missão é alargar a noção de liberdade delimitando onde a falsa expressão dela configura abuso.
Penso ainda que talvez o conflito geracional, apesar de real, não foi o que informou essa confusão, mas sim os lugares que estas mulheres ocupam. A importância da “posicionalidade” (Patricia Hill Collins) e do lugar de fala (Djamila Ribeiro) são suas aplicações como engrenagens da ferramenta interseccional (Kimberlé Crenshaw).
É imprescindível observar que Danuza e Deneuve são brancas, ricas, estão em posições de poder institucional legítimo, e são heterossexuais. Nada disso seria problemático caso houvesse também a consciência de que atrelados a estas características estão os benefícios do privilégio, cuja característica mais marcante é a cegueira que permite pensarmos que algo não é um problema simplesmente por não ser um problema nosso.
É jogada de manutenção de poder dar atenção desproporcional a qualquer bobagem proferida por um número ínfimo de gente branca e rica que confunde desejos particulares com direitos sociais.
Não estou surpresa que esses textos existam; todas nós conhecemos mulheres que pensam assim, o feminismo sempre questionou esta postura, e a medida que o projeto avança, vamos conseguindo ver com mais rapidez e eficácia os pontos onde é distorcido. O patriarcado segue firme e forte, e cabe bastante a nós investigar o passado para orientar o futuro dessa e tantas outras discussões – que indelevelmente ocorrerão em espaços como redes sociais, que podem ser cansativas, mas há nelas muita troca e potencial pedagógico.
Que as tecnologias de comunicação sigam nos auxiliando a explorar, com vigor e honestidade, todas as nuances de nossa opressão histórica e sistêmica até que a erradiquemos. Se no processo houver desconforto, que bom: é uma escola potente. “Feminismo” foi o verbete mais procurado no dicionário Merrian-Webster em 2017. Espero que em 2018 a palavra de ordem seja “discernimento”.