*Artigo da economista Alessandra Orofino, curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas, originalmente publicado na Folha de São Paulo.
Adriana Ancelmo nasceu em São Paulo, mas foi criada no Rio. Formou-se em direito e foi trabalhar com o então procurador-geral da Alerj, Régis Fichtner. Foi assim que conheceu Sérgio Cabral, com quem se casou em 2004. Nos dois mandatos de governador do marido –entre 2007 e 2014–, Adriana viu seu patrimônio multiplicar-se por dez. Em dezembro de 2016, teve a prisão provisória decretada sob suspeita de lavar dinheiro e ser beneficiária do esquema de corrupção comandado por Cabral.
Nesta sexta-feira (17), a Justiça decidiu que Adriana poderia aguardar julgamento em prisão domiciliar. A justificativa: seus filhos, que têm 11 e 14 anos, não poderiam ficar sem pai e mãe em casa.
Como Adriana, mais de 1.300 mulheres aguardam julgamento nas prisões do Rio, segundo o Departamento Penitenciário Nacional. São mulheres que podem ser inocentes e, no entanto, já estão sendo punidas. Mais da metade delas é mãe. E quase 70% foram presas apenas por suspeita de tráfico de drogas, sem outras acusações agravantes. Ao contrário de Adriana, essas mulheres em geral têm baixa escolaridade, são pobres, pretas e não têm nenhuma possibilidade de movimentar um patrimônio milionário –roubado do mesmo Estado que hoje deixa de pagar seus servidores– caso respondam por seus processos em liberdade.
É mais do que óbvia a perversão de um sistema prisional que encarcera sem julgamento mães acusadas de um crime que sequer deveria existir enquanto seus filhos crescem sem a presença materna. Adriana Ancelmo deve sim poder aguardar julgamento em sua casa –desde que seja realmente possível evitar que ela use a oportunidade para esconder o butim do marido. Mas outros milhares de mães pelo Rio e pelo Brasil deveriam ter o mesmo direito. Não têm.
À primeira vista pode parecer contraditório que, apenas dez dias depois de o presidente fazer um discurso enaltecendo a participação da mulher na criação de crianças e na boa execução de compras de supermercado –e mais nada–, um caso de tamanho destaque confirme, pela exceção, a regra de absoluta falta de compromisso do país com esse mesmíssimo papel de mãe e dona de casa quando se trata de detentas.
No entanto, o que o caso Adriana Ancelmo revela é aquilo que o presidente não disse, mas deixou implícito: algumas mulheres devem mesmo aspirar exclusivamente a ser mães e gestoras do lar. Outras, no entanto, sequer têm sua humanidade reconhecida o suficiente para que seu direito à maternidade seja preservado. Seus filhos deixam de ser crianças no momento em que saem do ventre –não à toa, crianças pretas são percebidas como mais velhas do que realmente são, ao contrário de crianças brancas. A distorção de percepção de idade é compartilhada, inclusive, pelas forças policiais. São crianças sem infância e que, portanto, podem ser criadas sem mãe.
Resta saber se em casa Adriana continuará contando com a força de trabalho das duas babás vistas subindo no helicóptero de Sérgio Cabral quando ele ainda era governador. No final das contas, são mulheres como elas que muitas vezes perdem a oportunidade de criar seus próprios filhos, ainda que não estejam presas, para criar os filhos de outras –mas desse tipo de “participação feminina” na vida doméstica o presidente não fala. Para ter direito a ser mãe –e à prisão domiciliar– é necessário, como Adriana, poder parecer bela, recatada e do lar.