*Artigo do filósofo Vladimir Safatle, originalmente publicado na Folha de São Paulo no dia 17 de março.
Faz parte da retórica neoliberal dizer que, diante dos choques de austeridade, não há escolhas.
O mantra é sempre o mesmo, independente da latitude, a saber, os gastos públicos estão descontrolados, é necessário assumir o princípio de realidade e aceitar que o Estado não pode tudo. Por isso, todos devem fazer esforços para sairmos da tormenta “cortando na carne”. Foram medidas “populistas” que nos levaram a tal descalabro, agora é necessário ser responsável.
O alvo privilegiado nesses casos costuma ser a Previdência e o sistema de seguridade social. No sistema neoliberal ideal não haveria segurança social, todos estariam em perpétua dependência das relações de força do mercado, tendo que se adaptar às exigências de flexibilidade, de “inovação”, de intensificação dos regimes de trabalho e diminuição tendencial dos salários.
Por isso, a Previdência é o alvo de uma espécie de reforma infinita. Ou seja, ela nunca terminará até que a própria Previdência seja extinta. Pois o objetivo é criar o Estado do mal-estar social, no qual governar é gerir a população através do medo do colapso econômico individual, já que não haveria mais nenhuma forma de amparo do Estado.
A maior prova de que estamos diante de uma reforma infinita é a história. Só no caso brasileiro, esta é a terceira reforma da Previdência em 20 anos. A primeira foi em 1998, com FHC. Depois, tivemos a reforma de 2003, uma das primeiras ações do governo Lula.
Agora, a pérola apresentada pelo governo, que aumenta para 65 anos a idade mínima de aposentadoria, iguala a idade de aposentadoria entre homens e mulheres (bem, que o desgoverno Temer tem problema com as mulheres não é exatamente uma novidade), e, esta é realmente de cair da cadeira, estabelece 49 anos de contribuição para a aposentadoria integral.
Ou seja, para ter aposentadoria integral com 65 anos, é necessário começar a trabalhar aos 16 anos e ter contribuído com a Previdência de forma ininterrupta. Como em várias regiões do Brasil a expectativa de vida não chega a 65 anos, a contribuição previdenciária será, para boa parte das pessoas, uma pura e simples forma de espoliação de seus rendimentos, já que elas morrerão antes de se aposentar.
Nesse contexto, o banqueiro Meirelles, capitão-mor da oligarquia financeira, lembrou que a maioria dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) estabelece 65 anos como idade mínima para aposentadoria.
Como a honestidade intelectual não é exatamente forte nesses debates, ele esqueceu de lembrar que estamos a falar de países nos quais a expectativa de vida é, em média, de 80 anos, diferente do caso brasileiro (75 anos).
Por sua vez, o sistema de saúde desses países permite que sua população tenha uma vida saudável mais longa do que a brasileira, cuja média, vejam só vocês, é 65 anos e meio.
No entanto, como todos sabemos, diante de dados dessa natureza, ouve-se atualmente a “evidência” de que o Estado brasileiro está quebrado e que a economia está em sua pior recessão.
O argumento por trás é que, diante da crise econômica, se deve obrigar cidadãos e cidadãs a trabalharem o máximo possível, com o mínimo de direitos.
Você não ouvirá nada, mas absolutamente nada, sobre um fato que deixou estarrecido não uma revista de intelectuais comunistas, mas o jornal norte-americano “The New York Times”.
Lembrando que o Brasil vive uma hemorragia de empregos e empobrecimento de sua população, o jornal lembra que “nem todo mundo está sofrendo”: o Poder Judiciário foi contemplado com R$ 41 bilhões a mais, a Assembleia Legislativa do Tucanistão aprovou aumento de 26% dos salários dos deputados, e o governo continua a gastar mais de R$ 400 bilhões com uma dívida pública nunca auditada. Dinheiro que vai para o sistema financeiro e a elite rentista.
Triste que indignações dessa natureza sejam mais fáceis de encontrar em uma mídia norte-americana do que na imprensa brasileira.