*Artigo do filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, originalmente publicado na Folha de São Paulo.
Talvez isto até desse um enredo razoável de romance histórico-político do tipo Gore Vidal.
Em uma república em algum lugar na América Latina, o vice-presidente mobiliza toda a casta política para derrubar a presidente que o elegeu e “estancar a sangria” produzida por denúncias de corrupção a envolver toda a classe, além do próprio personagem em questão.
Depois do golpe, a sangria no entanto não para totalmente. A máquina colocada em funcionamento no Poder Judiciário continua, mesmo que aos trancos e barrancos.
Mas eis que um “terrível acidente” culmina na morte do juiz do Supremo Tribunal Federal responsável pelas homologações das delações contra a casta política, exatamente no momento em que elas pareciam envolver de vez os nomes-chave do governo do vice-presidente golpista e do partido fundamental de sustentação do seu governo, partido que poderíamos chamar em nosso romance de, digamos, PSDB.
No lugar do juiz acidentado, o vice-presidente nomeia em seu lugar seu próprio ministro da Justiça: homem organicamente vinculado a todos os esquemas do dito, digamos, PSDB. Alguém cuja meteórica passagem pelo referido ministério foi marcada por uma crise no sistema penitenciário que resultou no assassinato de centenas de presos, levando a república em questão a figurar no noticiário internacional devido ao seu sistema carcerário medieval.
No meio da crise, o ministro entrou para a história não por ter feito ações sensatas e precisas para conter o problema, mas por simplesmente ter mentido despudoradamente quando evidenciados sua inação e descaso à ocasião de um pedido de auxílio de uma governadora de Estado. Algo tão absurdo que até mesmo a imprensa, normalmente complacente com o vice-presidente golpista, foi obrigada a reconhecer que o ministro era o homem errado no lugar errado.
Como se não fosse suficiente, o personagem já tinha provocado polêmicas ao defender a tortura “em alguns casos”, isto em um país no qual a polícia tortura mais hoje do que na época de seu antigo regime militar, e por usar a força militar e brutalidade de sua polícia para conter todo o tipo de manifestação e mobilização social.
Quando estava a sair do ministério, eis que um dos Estados da federação passa por uma greve da polícia e se transforma em pura e simples zona de anomia, com direito a saques em plena luz do dia, assaltos e afins. O que demonstra a incrível competência do nosso personagem, suas qualificações indiscutíveis para tão alto cargo.
Não, pensando bem, esse enredo não daria um bom romance. Muito óbvio, muito primário. Ninguém iria acreditar ser possível algo assim nos dias de hoje. Certamente, se isto ocorresse atualmente, haveria grandes manifestações nas ruas contra a natureza despudorada de tal esquema. Haveria uma mobilização da opinião pública contra a desagregação das instituições da República. Não, como romance o enredo definitivamente não funcionaria. Bem, talvez como comédia ele desse certo.
É, como comédia isso aí poderia funcionar. Nós poderíamos começar com a descrição de grandes manifestações populares a varrer as cidades da dita república exigindo combate feroz contra a corrupção e mostrando indignação cidadã.
Depois de a presidenta deposta, poderíamos mostrar essas mesmas pessoas tentando defender o vice-presidente envolvido em escândalos, indo para as ruas contra a corrupção, mas indignados não com o chefe do esquema, mas com um tal “presidente do Senado”, isto em uma semana na qual o próprio vice-presidente fora pego em um escândalo primário de tráfico de influência envolvendo dois de seus ministros.
Poderíamos mostrar ainda essas mesmas pessoas caladas quando da nomeação do ministro “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” convocado para empacotar os processos contra seu partido do coração.
Sim, seria hilário, o mundo todo morreria de rir.
É verdade que seria um pouco difícil acreditar na possibilidade de tudo isso, mas, em comédia, há sempre algo da ordem do vale-tudo, algo da ordem da ampliação caricatural até o absurdo, o que libera a imaginação para ganhar asas e pensar até mesmo o impensável. Ou seja, pensar o Brasil atual.