Por Luciana Genro
Nesta semana, dois intelectuais que pensam o Brasil de forma lúcida e crítica publicaram artigos contra o impeachment e contra um inaceitável governo liderado por Michel Temer, do PMDB. Luiz Eduardo Soares e Vladimir Safatle expuseram visões necessárias e coerentes com uma análise responsável do atual momento político do país. Reproduzo, aqui, seus artigos na íntegra, para que todos possam ler e refletir.
O antropólogo e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares foi secretario nacional de segurança pública no primeiro governo do Lula, do qual saiu por decepção. Em 2008, Luiz Eduardo apoiou minha candidatura a prefeita de Porto Alegre, colaborando na elaboração do programa. É fundador da Rede, mas segue colaborando comigo com suas ideias sobre segurança pública, um tema que será fundamental nas eleições municipais deste ano. Tive o privilégio de ler este artigo antes de sua publicação, pois Luiz o enviou como carta a alguns amigos. Excelente!
Já o Vladimir Safatle é filósofo e professor da USP. Companheiro de partido do PSOL, tive a alegria de ser sua aluna no Mestrado em Filosofia do Direito na USP!
Luiz Eduardo Soares: Sou contra o impeachment porque penso no dia seguinte (publicado originalmente no site Justificando)
Amig@s, não tenho a intenção de demonizar ninguém que seja a favor do impeachment, tenho muitos amigos favoráveis e a maioria de meu partido prefere o impeachment. Quero apenas compartilhar as razões pelas quais sou contra, razões que tenho repetido há meses, em textos e debates públicos. Aprovado o impeachment, no dia seguinte, a mídia vai clamar por uma trégua para que o novo presidente possa trabalhar em paz e para que a economia se reequilibre. O ministro Gilmar Mendes, novo presidente do TSE, vai empurrar com a barriga o processo contra a chapa Dilma-Temer, para não desestabilizar o novo governo. Dirá: “O Brasil não aguenta outra queda de presidente”. Editorialistas escreverão: “A economia não resistirá a uma nova perturbação da ordem. Deixem as eleições para 2018. Agora, todos devem dar uma trégua ao presidente Temer. Agora, vamos trabalhar para restabelecer a confiança e reeguer a economia”.
O ministro da Justiça será forte, fortíssimo, alguém com autoridade para segurar a polícia federal (e atenção, confio na integridade e independência da PF e do MP, mas sei quão poderosas podem ser as pressões e manipulações na contra-mão da vontade dos profissionais). Quem? Talvez um ex-ministro da Defesa e da Justiça, ex-presidente do Supremo. Este ministro forte agirá. A lava-jato, que é, não nos enganemos, a grande moeda política no Congresso, razão para que dezenas de suspeitos e investigados votem contra ou a favor do impeachment, a lava-jato vai sair das manchetes e escorregar para as páginas policiais. E boa parte da população, iludida, vai celebrar a derrota da corrupção, como se o PT fosse o único partido corrupto, como se Temer e o PMDB não fossem cúmplices do PT, como se esta gigantesca manobra de Cunha et caterva não tivesse como objetivo justamente neutralizar a lava-jato.
Quem for a favor do impeachment por acreditar que depois de derrubar Dilma o povo pressionará pelo impeachment de Temer, vive no mundo da lua. Quem for a favor, supondo que a lição será dada ao PT e logo depois ao PMDB, com a cassação da chapa no TSE, está inteiramente equivocado. Passando o impeachment, fecham-se as tampas para mais mudanças. O Brasil perderá a potência da lava-jato, esse fenômeno único e transformador em nossa história – independentemente de seus erros. Além disso, o país será submetido a um arrocho sem precedentes. Quem pagará o preço, mais uma vez, serão os mais pobres. O país trocará Dilma pelos direitos dos trabalhadores e pela oportunidade única em sua história de passar a limpo essa classe política degradada, em seu conjunto.
O único caminho promissor é o impeachment não ser aprovado, porque, no dia seguinte, todas as expectativas da sociedade se voltarão para o TSE e não haverá a possibilidade do engavetamento. A chapa Dilma-Temer será cassada e haverá novas eleições. As provas são cabais de que houve uso, na campanha, de recursos oriundos de corrupção. Quem cairá será a chapa Dilma-Temer, porque esses recursos não elegeram somente Dilma, elegeram também Michel Temer.
Portanto, se você quer novas eleições, quer a continuidade da lava-jato e quer um enfrentamento vigoroso, sem tréguas e profundo à corrupção, diga não ao impeachment. Se eu fosse deputado e tivesse a chance de votar, diria, apontando para Eduardo Cunha: “Considero o governo federal corrupto e abjeto, indefensável ética e politicamente, mas voto não ao impeachment porque não vou entregar meu país a Vossa Excelência e a seu grupo inqualificável (como deputado, estaria livre para aplicar os adjetivos apropriados), não vou entregar o Brasil a V.Exc, a Michel Temer, a Renan Calheiros. Os senhores são cúmplices, são a outra face da mesma moeda. Novas eleições, já. E se esta Casa tivesse vergonha, faria o impensável: renunciaria, coletivamente, para que as novas eleições fossem gerais. Como isso não vai acontecer, a Nação deve voltar os olhos para o TSE e cobrar decisão urgente.”
Você, favorável ao impeachment, creia: provavelmente sou tão crítico ao PT quanto você, desde o desgoverno na economia à derrocada ambiental, do atoleiro político à degradação ética. Mas prezo a lava-jato e não sou ingênuo: não creio que os problemas do Brasil se resumam ao PT. Quem acreditar nisso está iludido e dará, involuntariamente, sobrevida à corrupção e às mazelas nacionais, na política.
Vladimir Safatle: O governo Temer não existirá (publicado originalmente no site da Folha de São Paulo)
A partir de segunda-feira (18), o Brasil não terá mais governo. Na democracia, o que diferencia um governo do mero exercício da força é o respeito a uma espécie de pacto tácito no qual setores antagônicos da população aceitam encaminhar seus antagonismos e dissensos para uma esfera política. Esta esfera política compromete todos, entre outras coisas, a aceitar o fato mínimo de que governos eleitos em eleições livres não serão derrubados por nada parecido a golpes de Estado.
É claro que há vários que dirão que o impeachment atual não é golpe, já que é saída constitucional. Nada mais previsível que golpe não ser chamado de golpe em um país no qual ditadura não é chamada de ditadura e violência não é chamada de violência. No entanto, um impeachment sem crime, até segunda ordem, não está na Constituição. Um impeachment no qual o “crime” imputado à presidenta é uma prática corrente de manobra fiscal feita por todos os governantes sem maiores consequências, sejam presidentes ou governadores, é golpe. Um impeachment cujo processo é comandado por um réu que toda a população entende ser um “delinquente” (como disse o procurador-geral da República) lutando para sobreviver à sua própria cassação é golpe. Um impeachment tramado por um vice-presidente que cometeu as mesmas práticas que levaram ao afastamento da presidenta não é apenas golpe, mas golpe tosco e primário.
Temer agora quer se apresentar como líder de um governo de “salvação nacional”. Ele deveria começar por responder quem irá salvar o povo brasileiro dos seus “salvadores”. Seu partido, uma verdadeira associação de oligarquias locais corruptas, é o maior responsável pela miséria política da Nova República, envolvendo-se até o pescoço nos piores casos de corrupção destes últimos anos, obrigando o país a paralisar todo avanço institucional que pudesse representar riscos aos seus interesses locais. Partido formado por “salvadores” do porte de Eduardo Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Sérgio Cabral e, principalmente, o próprio Temer. Pois nunca na história da República brasileira houve um vice-presidente que conspirasse de maneira tão aberta e cínica para derrubar o próprio presidente que o elegeu. Em qualquer país do mundo, um político que tivesse “vazado” o discurso no qual evidencia seu papel de chefe de conspiração seria execrado publicamente como uma figura acostumada à lógica das sombras. No Brasil de canais de televisão de longo histórico golpista, ele é elevado à condição de grande enxadrista do poder.
Mas não havia outra chance para tal associação de oligarcas conspiradores. Afinal, eles sabem muito bem que nunca chegariam ao poder pela via das eleições. Esta Folha publicou pesquisas no último domingo que demonstravam como, se a eleição fosse hoje, Lula, apesar de tudo o que ocorreu nos últimos meses, estaria à frente em vários cenários, Marina em outros. O eixo central da oposição golpista, a saber, o PSDB, não estaria sequer no segundo turno. Temer, que deveria também ser objeto de impeachment para 58% da população, oscilaria entre fantásticos 1% e 2%. Estes senhores, que serão encaminhados ao poder a partir de segunda-feira, têm medo de eleições pois perderam todas desde o início do século. Há de se perguntar, caso fiquem no poder, o que farão quando perceberem que poderão perder também as eleições de 2018.
Os que querem comandar o país a partir de segunda-feira aproveitam-se do fato de o país estar em uma divisão sem volta. Eles governarão jogando uma parte da população contra a outra para que todos esqueçamos que, na verdade, são eles a própria casta política corrompida contra a qual todos lutamos. Diante da crise de um governo Dilma moribundo, outras saídas, como eleições gerais, eram possíveis. Elas poderiam reconstituir um pacto mínimo de encaminhamento de antagonismos. Mas apelar ao poder instituinte não passa pela cabeça de quem sempre sonhou em alcançar o poder por usurpação.
Diante da nova realidade que se anuncia, só resta insistir que simplesmente não há mais pacto no interior da sociedade brasileira e que nada nos obriga à submissão a um governo ilegítimo. Nosso caminho é a insubmissão a este falso governo, até que ele caia. Este governo deve cair e todos os que realmente se indignam com a corrupção e o desmando devem lutar sem trégua, a partir de segunda-feira, para que o governo caia e para que o poder volte às mãos da população brasileira. Àqueles que estranham que um professor de universidade pública pregue a insubmissão, que fiquem com as palavras de Condorcet: “A verdadeira educação faz cidadãos indóceis e difíceis de governar”. Chega de farsa.