Por Cláudia, Amarildo e tantos outros, vamos debater seriamente a política de repressão às drogas e a criminalização da pobreza.
Por Luciana Genro
O porta voz da polícia do Rio de Janeiro, ao tentar desculpar-se pela morte brutal de Cláudia, assassinada com vários tiros e arrastada pelas ruas, disse que ela era uma mãe de família, e portanto não havia razão para ela ser tratada assim. Poucos perceberam, mas o discurso oculto do policial é que se ela fosse de fato uma traficante não haveria problemas em ser assassinada. Quando Amarildo sumiu, também, a primeira justificativa foi de que ele era um traficante e, portanto, merecedor de violência e morte.
A violência policial contra os pobres não é uma novidade. Graças a uma filmagem amadora e às redes sociais, a morte de Cláudia não ficou sendo apenas mais uma nas estatísticas. O fato de ela ter sido arrastada por um camburão da polícia chocou o Brasil, e todos ficaram sabendo que Cláudia foi covardemente assassinada pela polícia numa ação de “guerra às drogas”.
A chamada guerra às drogas é hoje o mais poderoso instrumento de criminalização da pobreza e de instigação ao racismo. Conforme Loic Wacquant, o sistema penal hipertrofiado tem “um lugar central no aparato emergente para a gestão da pobreza”1. Este fato pode ser percebido claramente no caso de Cláudia e Amarildo e também no episódio da repressão ao tráfico na cracolândia, em São Paulo, onde os dependentes foram brutalmente atacados pela polícia de Alckmin, em nome da repressão ao tráfico. A guerra às drogas legitima a violência e as violações aos direitos humanos cometidas pelo próprio Estado contra os pobres, normalizando as mortes dos traficantes, ou dos supostos traficantes.
Em uma palestra recente, Noam Chomsky chamou a atenção para o fato de que a guerra às drogas é uma herança do racismo. Os avanços conquistados nos EUA nos anos 50/60 em relação aos direitos civis dos negros sofreram um revés nos anos 70, justamente devido ao discurso da guerra às drogas que permitiram uma contra ofensiva racista de ataque aos direitos dos negros e pobres.
Esta guerra às drogas também joga os pobres contra os pobres, pois os jovens sem perspectivas são seduzidos pelo tráfico, tornando-se soldados numa guerra contra a polícia (que também é composta por pobres) e contra outros jovens da favela ao lado, na disputa pelos pontos de tráfico. É o roto contra o esfarrapado.
Está cada vez mais evidente que os efeitos negativos agregados da criminalização e do proibicionismo são muito superiores às consequências do uso ou do abuso das drogas ilícitas. Dos 50 mil homicídios dolosos anuais, grande parte relaciona-se ao tráfico de drogas, seja fruto das disputas entre os traficantes, seja do enfrentamento da polícia com os mesmos. E há, ainda, os mortos “por engano”, como Cláudia , Amarildo e tantos outros que não tiverem repercussão na mídia. Sabe-se também que a corrupção policial é alimentada pelas oportunidades de negócios ilícitos que o comércio clandestino propicia. E ainda há que somar os custos financeiros e humanos impostos pelo sistema penitenciário, assim como os gastos com as instituições de segurança e de justiça criminal, cujas energias são em boa parte consumidas com essa vasta problemática.2
Sobre a Lei 11.343/06
A nossa lei anti drogas (nº 11.343/06) promove a discriminação ao não fornecer critérios objetivos para diferenciar o traficante do usuário, bem como para caracterizar a associação para o tráfico. É uma norma penal aberta, isto é, há uma diferenciação nebulosa entre usuários e traficantes. Seu texto gera uma política criminal sem nenhuma correspondência entre os resultados desejados e os resultados obtidos, pois fracassa na promessa de reduzir os índices de criminalidade derivados do tráfico.3
Para o usuário não há pena de prisão, porém a questão é quem terá o “privilégio” de ser tratado como usuário. Para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstancias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”(artigo 28 parágrafo 2º).
Aqui, evidentemente, não há um critério objetivo. Se a pessoa flagrada em posse da droga tiver uma “aparência” de traficante, poderá ser indiciada pela Polícia ou denunciada pelo MP como traficante. Isto é, se estiver numa favela, ou for visivelmente pobre e/ou negro, mesmo que esteja com uma quantidade pequena de droga poderá responder por tráfico. Entretanto, se a sua aparência for de um jovem de classe média, o mais provável – mesmo que a quantidade de droga não seja tão pequena assim – é que ele seja considerado um usuário. A mera leitura do parágrafo 2º do artigo 28 é suficiente para evidenciar que esta discriminação está autorizada pela própria lei.
Foi o próprio Ministro do STF, Luís Roberto Barroso quem afirmou que, ao analisar os processos que chegam ao Supremo sobre tráfico de drogas, constatou que “boa parte das pessoas presas são pobres que foram enquadradas como traficantes por portar quantidades não significantes de maconha. E minha constatação pior é que jovens, negros e pobres entram nos presídios por possuírem quantidades não tão significativas de maconha e saem de presídios escolados no crime”, afirmou o ministro4.
O problema não se restringe à diferenciação entre usurário ou o traficante, mas também ao indivíduo que será considerado em associação com o tráfico ou não. O artigo 35 que caracteriza a associação para o tráfico determina a pena de reclusão de 3 a 10 anos, que se soma à pena do artigo 33 que caracteriza o tráfico. Assim, se o indivíduo for considerado membro de uma associação para o tráfico sua pena será aumentada significativamente. Tal caracterização também não é objetiva.
“É possível, então, suspeitarmos que, por trás de toda a elaboração legislativa da lei 11.343/06 acabou-se criando um mecanismo eficiente de enclausuramento de determinado grupo de pessoas, demonstrando que, ao contrário do que poderia parecer (uma lei tão ampla que contemplasse todos os tipos de condutas desviantes e indesejáveis), a lei não é democrática em sua abrangência, mas reforçadora de estigmas sociais e implementadora de uma política de ‘faxina social’, já que os indivíduos de classe média ou de classe alta tenderão a ser identificados nas incursões policiais, aplicando esse mesmo texto legal, como usuários e, portanto, excluídos das prisões”.5
Os resultados da política proibicionista
A desencarcerização do usuário é um avanço, mas totalmente insuficiente. Além da discriminação evidente, vemos que o resultado desta política é que o usuário é obrigado a ter contato com o mundo do crime para adquirir a droga, arriscando-se em regiões muitas vezes conflagradas pela disputa de território ou correndo risco de ser assassinado por dívidas com traficantes perigosos. Além disso, muitas vezes a errônea profecia de que “ a maconha é porta de entrada para outras drogas” acaba se realizando devido à criminalização pois o traficante tem interesse em vender drogas cada vez mais caras ao usuário.
A guerra às drogas tem fracassado no mundo todo. O aumento dos esforços policiais no combate às drogas e as penas mais duras não tem como conseqüência uma diminuição no número de usuários e dependentes mas sim um aumento dos crimes relacionados às drogas, tanto crimes contra a vida como nos crimes de corrupção.
Esta não é uma conclusão de vertentes políticas esquerdistas. Milton Friedman, economista liberal de direita é um dos que se somou à defesa da descriminalização:
“As drogas são uma tragédia para os viciados. Mas criminalizar o seu uso converte essa tragédia em um desastre para a sociedade, para os usuários e não-usuários. Nossa experiência com a proibição das drogas é uma repetição da nossa experiência com a proibição de bebidas alcoólicas. (…) Se as drogas tivessem sido descriminalizadas há 17 anos, o “crack” nunca teria sido inventado (ele foi inventado porque o alto custo das drogas ilegais tornou rentável oferecer uma versão mais barata) e hoje haveria muito menos viciados. As vidas de milhares, talvez centenas de milhares de vítimas inocentes teriam sido poupadas, e não só nos EUA. Os guetos de nossas grandes cidades não seriam uma terra de ninguém infestados de drogas e crime. Menos pessoas estariam em prisões e menos prisões teriam sido construídas”.6
No Brasil, segundo o INFOPEN, em 2005 havia 32.880 presos por tráfico, em 2011, já com a nova lei, este número disparou para 125.744 presos por tráfico. Com estes números, a suposição de que um endurecimento das penas diminuiria o tráfico cai por terra.
A repressão não tem influência nenhuma sobre uma parcela da juventude que busca no tráfico os meios de sobreviver e de realizar os sonhos e o padrão de consumo estimulados diariamente na televisão: tênis e roupas de marca, celular, computador,etc, etc…. Em certa medida o tráfico representa a única forma de ascensão social para esta parcela da juventude, além de lhes oferecer um “grupo social” ao qual pertencer, no qual se sentem superiores e poderosos, pois infligem medo nos demais.
Mas o destino final destes jovens é a morte precoce ou o encarceramento. O estado degradante das prisões só faz recrudescer a revolta e a falta de perspectiva daqueles que por lá passam, e que ao saírem encontram-se ainda mais inimpregáveis do que antes, não tendo outra opção se não o mundo do crime.
Para o Ministro Barroso:
“O foco do meu argumento não é a questão do usuário, não que considere desimportante. A preocupação é dupla. Primeira é reduzir o poder que a criminalização dá ao tráfico e esses barões nas comunidades mais pobres e, especialmente, na minha cidade de origem, o Rio. A criminalização fomenta o submundo do poder político e econômico a barões do tráfico que oprimem comunidades porque oferecem remunerações maiores que o Estado e o setor privado. Meu segundo questionamento diz respeito à conveniência de uma política pública que manda para a penitenciária jovens de bons antecedentes que saem de lá graduados na criminalidade.”7
A própria polícia tem consciência de que a guerra ao tráfico está perdida:
“O aumento das nossas ações nas fronteiras forçou os traficantes a adotar novas táticas. Mas, embora as operações tenham se intensificado, elas não são páreo para a demanda da droga, que incentiva a audácia dos traficantes. O que faz com que a polícia fique enxugando gelo.”8
Salo de Carvalho relata que em março de 2009, em Viena, após uma década da vigência do plano das nações Unidas “Um mundo livre das Drogas”, os representantes dos países, agências internacionais de controle e ONGs reuniram-se para fazer um balanço da implementação do plano. Segundo ele,
“O balanço apresentado possibilita verificar que a estratégia internacional de guerra às drogas sustentada pela criminalização (a) não logrou os efeitos anunciados (idealistas) de eliminação do comércio ou diminuição do consumo, (b) provocou a densificação no ciclo de violência com produção de criminalidade subsidiária (comércio de armas, corrupção de agentes estatais, conflitos entre grupos p.ex.) e (c) gerou a vitimização de grupos vulneráveis (custo social da criminalização) , dentre eles consumidores, dependentes e moradores de áreas de risco.”9
Ainda segundo Salo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBC-Crim) antecipou os resultados que foram publicizados no evento internacional, diagnosticando a ineficácia do projeto “Um mundo livre das Drogas”. O Instituto afirma ser “irreal, irracional e irrealizável a meta de consumo zero” e constata que “a política global de combate às drogas (é) usada como técnica de colonização cultural, cujos danos aos usuários e à sociedade superam os problemas decorrentes do abuso de entorpecentes – v.g. incremento da violência, encarceramento em massa e corrupção dos agentes estatais.”10
Salo de Carvalho explica que existe uma falsa imagem de que o direito penal e o processo criminalizador podem ser instrumentos eficazes no controle ou erradicação do consumo de drogas e que esta falsa imagem deriva de uma visão equivocada do fenômeno das drogas. Nesta ótica haveria um vínculo indissolúvel entre consumo e dependência, uma irreversibilidade desta dependência , uma necessária subcultura criminal formada pelos usuários e ainda a convicção de que o usuário não tem condições de ter uma vida produtiva. Os estudos criminológicos, entretanto, tem desconstituído esta imagem, sobretudo demonstrando ser falsa conexão entre usuários e toxicômanos e ainda entre usuários e subculturas criminais.11
Luís Eduardo Soares argumenta também que está evidenciado que não há eficácia prática na proibição. O acesso de consumidores potenciais às drogas continua sendo uma realidade inabalável, ao longo das últimas décadas, apesar das políticas repressivas, independentemente do volume de dinheiro investido (ou perdido) nessa guerra e da qualidade das polícias mobilizadas. O acesso não é afetado pela proibição. Por isso, flexibilizações legais não importam em expressiva mudança na demanda.
Contudo, mesmo que as mudanças fossem significativas, esse fato não justificaria a intervenção do Estado no domínio da liberdade individual ou das escolhas privadas, desde que elas não violem direitos alheios.
Encarcerando os pobres
O Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária, atrás apenas dos EUA, Rússia e China. Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, do Ministério da Justiça, apontou um crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira no período de 1990 a 2012, registrando 548.003 presos em 2012, uma taxa de 287,31 para cada 100 mil habitantes, em uma população de 190.732.694 habitantes, de acordo com o IBGE.
Esse crescimento foi muito maior, por exemplo, que a taxa de crescimento da população nacional, que não passou de 30%. Ou seja, enquanto a população cresceu 1/3, a população carcerária mais que sextuplicou. O déficit é de mais de 100 mil vagas.12
E quem são estes presos? No ano de 2012 os pardos e negros eram ampla maioria. 43,7% de presença dos pardos e 17% de negros. Também era maioria os que tem o Ensino Fundamental Incompleto, 50,5%. Dos demais, 14% eram apenas alfabetizados e 6,1% analfabetos. Os jovens também eram maioria: Quase 30% tinha entre 18 e 24 anos e 25,3% entre 25 e 29 anos. A maioria cometeu crimes contra o patrimônio e/ou tráfico de drogas.13 Podemos sintetizar o perfil do preso assim: homem pardo ou negro, com idade entre 18 e 29 anos, com ensino fundamental incompleto , preso por roubo ou tráfico.
Para exemplificar o ritmo de agravamento desta realidade podemos apontar que há um crescimento significativo de mulheres presas por envolvimento no tráfico de drogas. Entre 2007 e 2012 o Estado do Rio Grande do Sul registrou aumento de 66% da população carcerária feminina. No Brasil, no mesmo período, o crescimento foi de 36%14. Em São Paulo, 40% dos jovens internados estão envolvidos com o tráfico de drogas, segundo dados da Fundação Casa15. O Rio Grande do Sul também responde perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos devido à situação de super lotação e precariedade do Presídio Central.
Neste contexto o comércio ilícito de entorpecentes aparece em segundo lugar de incidência (atrás dos crimes patrimoniais) atingindo 24,43% da população carcerária em geral, e no que diz respeito à população carcerária feminina, é a principal causa de encarceramento, atingido 49,65% das presas16.
E nos presídios, lugar reservado aos descartáveis, reina a barbárie, como vimos de forma mais aguda no Maranhão, Estado governado há décadas pela família Sarney, à qual o PT deu fôlego ao chegar no poder. A sociedade se chocou com a violência em Pedrinhas, mas é hora de refletir por que se chegou a este extremo. É hora de parar o clamor por encarceramento e aumentar o clamor por direitos.
Qual a saída?
Em 2013, pela primeira vez, representantes de 34 países das Américas se uniram para buscar uma alternativa à guerra às drogas. Estes chefes de Estado e de Governo, incluindo os Estados Unidos, solicitaram à OEA a discussão de alternativas e o resultado foi o relatório “O problema das drogas nas Américas”, apresentado pelo Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza. Ele apresenta como principais recomendações a descriminalização do uso das drogas e a regulamentação do consumo da maconha como um dos cenários a serem analisados. Uma Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre a questão das drogas vai acontecer em 2016 e este documento deve servir para alimentar o debate.17
O relatório da Comissão global de Política sobre Drogas, assinado pelos ex- presidentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso; da Colômbia, César Gavíria, do Chile, Ricardo Lagos, do México Ernesto Zedillo; pelo ex- presidente do FED Paul Volcker e pela ex – alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Louise Arbour, traz duas recomendações: substituir a criminalização do uso de drogas por uma abordagem de saúde pública e experimentar modelos de regulação legal de drogas ilícitas para reduzir o poder do crime organizado18.
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBC-Crim) apresenta como proposta:
“A não incriminação e regulamentação do cultivo, produção, fabricação e comércio de drogas deve ser encarada como uma alternativa viável (a ser objeto de exame) na construção de uma relação pacífica com as drogas. Em relação ao consumo não- problemático de toda e qualquer droga, por ausência de lesividade e em respeito à regra da não punibilidade da autolesão, é inarredável a renúncia à intervenção penal.”19
Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) é uma organização internacional sem fins lucrativos de profissionais da justiça criminal(juízes, policiais, advogados, etc..) que defendem a substituição da proibição por “um sistema rígido de regulação legalizada”20. Esta organização tem um braço no Brasil – LEAP Brasil – cuja proposta é “a eliminação da política de proibição das drogas e a introdução de uma política alternativa de controle e regulação das drogas, incluindo pertinentes regulamentações impositivas de restrições à venda e uso de drogas em razão da idade, da mesma forma que existem restrições em razão da idade ao casamento, assinatura de contratos, álcool, tabaco, direção de veículos e operação de equipamentos pesados, direito de voto, e outras”21.
A juíza aposentada Maria Lúcia Karam é uma das associadas, cuja experiência na justiça criminal a fez perceber “os danos e as violações aos direitos humanos promovidas em nome da guerra às drogas”. Como juíza ela sempre declarou a inconstitucionalidade das leis que criminalizam o uso pessoal “pois se trata de uma conduta privada que não atinge direitos de terceiros e que portanto o Estado não pode intervir”. Mas a juíza também concluiu, a partir de sua experiência que “não basta o direito de cada um colocar no seu corpo o que bem entender. É na proibição da produção e comércio que os maiores danos estão presentes.”22
Luís Eduardo Soares defende que a proposta correta não é “liberar” pois não há que se fazer apologia ou celebração das drogas. Muito menos defender a ausência de limites ou de regras. Para ele, drogas “liberadas” , no sentido que associa o termo à ideia de anarquia, é o que temos hoje pois não há nenhum controle de qualidade dos produtos comercializados; nenhuma informação sobre limites de segurança para o uso de cada substância, ou sobre os riscos envolvidos; um mercado instável, em que a corrupção policial, a violência e as armas atravessam o caminho de toda a sociedade, mesmo dos que não têm interesse no consumo. Legalizar implica disciplinar, regulamentar, negociar circunstâncias, métodos e padrões de relacionamento. Portanto significa reverter a situação de caos que hoje impera e que traz prejuízos para todos – menos para os que traficam.A experiência de políticas descriminalizantes tende a demonstrar que o consumo não sofre alteração significativa. A elevação gira em torno de 1,5% e fica na média do que se verifica em outros países que não flexibilizaram sua legislação, no mesmo período.
Experiências internacionais de descriminalização da maconha
Muito embora insuficiente do ponto de vista da desestruturação do tráfico e de todas as suas consequências, a descriminalização da maconha é um inegável passo adiante na luta contra o proibicionismo. Marcelo Niel, médico psiquiatra e psicoterapeuta especializado no tratamento de dependentes químicos e professor do Departamento de Psiquiatria da Santa Casa de São Paulo pontua que hoje a discussão sobre a descriminalização gira em torno principalmente da maconha pois ela é considerada pelos organismos internacionais de saúde, como uma droga “leve”, pois os prejuízos para quem a consome são muito menores quando comparados a outras drogas. Ele relata ainda que a maconha pode ser utilizada de forma bastante eficiente no controle da dependência do crack. Um estudo realizado pelo Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) demonstrou que 68% dos dependentes de crack avaliados conseguiram atingir a abstinência fumando apenas maconha. Evidentemente que o uso da maconha não é isento de risco pois é uma substância que pode causar dependência e trazer prejuízos, assim como outras substâncias lícitas, como o álcool, o café e o cigarro, que causam dependência e muitos danos à saúde.23
A maior parte das experiências de descriminalização da maconha ainda está relacionada ao seu uso medicinal. Nos Estados Unidos, cujos governos tem incentivado e promovido a “guerra às drogas”, atualmente, o uso medicinal da maconha já é legalizado na Califórnia e em outros 13 Estados americanos. Na Califórnia, a lei estadual foi mudada, tornando a posse da droga apenas uma infração e não mais uma contravenção. Agora, adultos flagrados com maconha no Estado vão receber uma multa de US$ 100, mas não vão ter ficha criminal.24
Mas o conceito de uso medicinal veio ganhando novos contornos ao longo do processo:
“Essa história começou no maior estado dos Estados Unidos. Há mais de 15 anos, a Califórnia legalizou o uso medicinal da maconha. No começo, a droga era prescrita para portadores de HIV e pacientes terminais de câncer. Mas, hoje em dia, a lei foi se flexibilizando e é muito fácil conseguir uma prescrição médica.
Cientistas já comprovaram a eficácia do THC, o principio ativo da maconha, no tratamento de náuseas e vômitos provocados pela quimioterapia, para pacientes que sofrem de glaucoma e de falta de apetite.
Mas os médicos nos Estados Unidos se baseiam em mais de 20 mil pesquisas, de menor repercussão, para receitar maconha para até 190 enfermidades diferentes. Entre elas, estresse, insônia, ansiedade, cólicas menstruais, dores nas costas, convulsões e epilepsia.”25
A grande novidade nos EUA aconteceu no estado do Colorado. Em 1 de janeiro o Colorado se converteu no primeiro estado dos Estados unidos onde é legal cultivar e vender maconha não só para propósitos medicinais. Washington e Colorado aprovaram a posse e uso de pequenas quantidades de maconha para propósitos não medicinais em um plebiscito realizado em novembro de 2012.No Colorado pelo menos 37 lojas em todo o estado já foram totalmente licenciadas e abriram para vendas para maiores de 21 anos . Em 2014 as lojas de maconha devem abrir também em Washington.26
O Uruguai é o primeiro país da América Latina a legalizar o uso, plantio e venda da maconha. O consumo já não era mais crime há muitos anos e a principal preocupação do governo foi impedir o narcotráfico de seguir dominando o mercado. O Artigo 4º da lei aprovada e promulgada pelo presidente Pepe Mujica estabelece o objetivo da legalização:
“A presente lei tem por objeto proteger aos habitantes do país dos riscos que implica o vínculo com o comércio ilegal e o narcotráfico buscando, mediante a intervenção do Estado atacar as devastadoras conseqüências sanitárias, sociais e econômicas do uso problemático de substâncias psicoativas, assim como reduzir a incidência do narcotráfico e o crime organizado”.27
A produção e a comercialização serão controlados pelo governo, argumentando que o projeto “regula um mercado já existente”. Alguns integrantes do governo chegam a dizer não estão legalizando a maconha porque não haverá um livre comércio, com preços regulados pelo mercado. Será tudo controlado pelo Estado.
Aqui no Brasil estamos iniciando esta discussão. O projeto de Lei 7270/14 do nosso deputado Jean Wyllys é um ótimo referencial para o debate. Ele foi construído de forma democrática pelos diversos segmentos que defendem a descriminalização da maconha, que é o oposto da liberação hoje existente. Descriminalizar significa discutir a questão sem preconceito, e sem a violência policial permeando o problema. Fazer o debate tendo em vista que a lógica proibicionista propicia o aumento da exclusão social e da inclusão prisional.
Loic Wacquant, em As Prisões da Miséria28, demonstra como o “mais Estado policial” tem substituído o “menos Estado econômico e social”, e que este menos é, em última análise, a causa do aumento da violência generalizada. Se tomarmos a VIDA e a LIBERDADE como os bens jurídicos mais valiosos para o ser humano, a ideia de que o direito penal tem como objetivo tutelá-los é apenas uma função declarada, mas nunca realizada. A retórica humanista apenas dissimula a realidade cruel: um direito penal autoritário, discriminatório, violento e ineficaz do ponto de vista da defesa da vida e da liberdade.
1 Wacquant, Loic. As prisões da Miséria. Rio de janeiro: Zahar, 2011. Pág. 22.
2 Resumo dos argumentos apresentados por Luís Eduardo Soares em palestra na abertura da conferência que celebrou os 58 anos da FIOCRUZ, em 10 de setembro de 2012, intitulada “Contra a drogafobia e o proibicionismo: dissipação, diferença e o curto-circuito da experiência”.
3 Guilherme, Vera Maria. Quem tem medo do lobo mau? : a descriminalização do tráfico de drogas no Brasil: por uma perspectiva abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Pág. 12
5 Guilherme, Vera Maria. Quem tem medo do lobo mau? : a descriminalização do tráfico de drogas no Brasil: por uma perspectiva abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Pág. 90
6 Tradução livre: “Drugs are a tragedy for addicts. But criminalizing their use converts that tragedy into a disaster for society, for users and non-users alike. Our experience with the prohibition of drugs is a replay of our experience with the prohibition of alcoholic beverages. (…)Had drugs been decriminalized 17 years ago, “crack” would never have been invented (it was invented because the high cost of illegal drugs made it profitable to provide a cheaper version) and there would today be far fewer addicts. The lives of thousands, perhaps hundreds of thousands of innocent victims would have been saved, and not only in the U.S. The ghettos of our major cities would not be drug-and-crime-infested no-man’s lands. Fewer people would be in jails, and fewer jails would have been built” http://fff.org/explore-freedom/article/open-letter-bill-bennett/
8 Superintendente da Polícia Federal, delegado Sandro Caron, ao jornal Zero Hora em 25/11/2013, pág. 41
9 Carvalho, Salo de. Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª Ed.rev.,atua. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 121
10 Ibidem pág. 125
11 Carvalho, Salo de. Pág. 237-238
13 http://atualidadesdodireito.com.br/iab/artigos-do-prof-lfg/perfil-dos-presos-no-brasil-em-2012/
14 Zero Hora, 22/08/2013. Pág. 36
16 Carvalho, Salo de. A Política Criminal de drogas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 255
17 http://vivario.org.br/oea-relatorio-recomenda-descriminalizacao-das-drogas/
18 Folha de São Paulo, 22 de maio de 2013, Página Opinião A3
19 Carvalho, Salo de. Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª Ed.rev.,atua. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 124
20 Tradução livre: Law Enforcement Against Prohibition is an international 501(c) 3 nonprofit organization of criminal justice professionals who bear personal witness to the wasteful futility and harms of our current drug policies. Our experience on the front lines of the “war on drugs” has led us to call for a repeal of prohibition and its replacement with a tight system of legalized regulation, which will effectively cripple the violent cartels and street dealers who control the current illegal market. http://www.leap.cc/
21 http://www.leapbrasil.com.br/missao
22 http://www.leapbrasil.com.br/
24 http://www.ibccrim.org.br/noticia/13700-Maconha-nao-e-legalizada-na-California
27 http://www.elpais.com.uy/uploads/files/2013/12/10/Ley%20de%20Marihuana.pdf
28 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.