Representantes de diversos órgãos, entidades e movimentos sociais voltados aos direitos da população negra participaram, nesta quarta-feira (3), de audiência pública sobre racismo e hipervigilância de pessoas negras nos shopping centers e supermercados. A audiência ocorreu na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH), por proposição da deputada Luciana Genro (PSOL), em parceria com o Movimento Vidas Negras Importam.
O coordenador do Movimento, Gilvandro Antunes, é assessor da parlamentar e a procurou para propor a realização da audiência. “Este é, sim, um problema das pessoas brancas, porque nos beneficiamos do racismo, muitos de nós fechamos os olhos para o racismo. Mas evidentemente que nada pode ser dito ou feito nesse campo sem o protagonismo das pessoas negras”, colocou Luciana Genro.
Ao longo da audiência, diversos participantes relataram casos de perseguição e intimidação ocorridos com eles próprios, incluindo a presidenta da CCDH, deputada Laura Sito. O defensor público Andrey Melo, dirigente do Núcleo de Defesa da Igualdade Étnico-Racial (NUDIER), observou neste sentido: “não há cidadão negro nesse país que não tenha sofrido com o peso de olhares nas relações de consumo. Não é uma, nós temos dezenas de histórias para contar”.
Na legislatura passada, o mandato de Luciana Genro acompanhou o caso do cineasta Jeferson Brum, que foi abordado por um segurança no Shopping Rua da Praia e teve uma arma apontada para si quando pediu a identificação do funcionário. Pelo Movimento Vidas Negras Importam, Gilvandro Antunes acompanhou também o caso do músico Hélder Corrêa, que foi vítima de racismo no shopping Praia de Belas ao estar no estabelecimento com seu saxofone.
Representando o Movimento Negro Unificado, o coordenado estadual Felipe Teixeira também apontou que essa questão já é amplamente conhecida, mas deve seguir sendo debatida. “No mesmo dia em que eu recebi a Comenda Carlos Santos aqui na Assembleia, fui em uma loja aqui do Centro de Porto Alegre. E desde que entrei, o segurança começou a me seguir, até eu sair da loja. É preciso haver uma legislação que obrigue as empresas a ter formação antirracista para os gerentes, supervisores e funcionários”, colocou.
Um dos casos recentes que motivou o pedido de audiência foi o da professora Isabel Oliveira, em Curitiba. Ela foi seguida por seguranças em um supermercado e seu gesto de se despir para “provar” que não estava roubando nada por baixo das roupas acabou tendo repercussão nacional. “A Isabel já se tornou um símbolo da luta antirracista. Nós recebemos diariamente relatos pelo Movimento Vidas Negras Importam a respeito de hipervigilância em supermercados”, afirmou Gilvandro Antunes.
Ele lamentou a ausência da Associação de Supermercados e a dos Shoppings Centers, que foram convidadas para participar da audiência. “Esse debate compete a todos os autores, não achamos que temos que debater só entre nós. Mas a ausência desses atores aqui, que são fundamentais para mudar ou tentar mudar, significa que ou eles não reconhecem que estamos em uma sociedade racista, preconceituosa, violenta; ou eles têm medo de assumir e daí lidar com as consequências”, acrescentou.
Letícia Padilha, representante da Sociedade Brasileira de Direito Antidiscriminatório, apontou que o racismo institucional e estrutural são fenômenos perenes na sociedade brasileira. “Casos ocorrem todos os dias nos aeroportos, hospitais, shoppings centers e supermercados”, afirmou. “É importante manter o tema sempre em pauta. A sociedade como um todo precisa estar permanentemente debatendo esse tema, em todas as esferas de poder”, agregou a Juíza Corregedora Geneci Ribeiro de Campos, que representou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mencionando a importância do aspecto educacional no combate ao racismo.
Esta questão da permanência do racismo na sociedade brasileira também foi destacado por Bryan Rodrigues, do coletivo Juntos Negros e Negras. “Seguimos vendo a lógica de que está tudo bem nos ver na Câmara de Deputados limpando os banheiros, mas não no Plenário. Isso tem a ver com racismo estrutural, que não só coloca os negros fora dos espaços de poder, mas também com uma cultura de que precisa ser supervigiado, de forma a fazer com que o sistema siga explorando os corpos negros. Precisamos travar esse debate”, apontou.
Vítima de racismo em Curitiba, a professora Isabel Oliveira participou de forma virtual da reunião. Ela tem estado em contato direto com Gilvandro desde o ocorrido, e o Movimento Vidas Negras Importam tem fornecido suporte afetivo e emocional. “É necessário reconhecer que essa não foi a primeira e tampouco será a última vez que uma mulher negra, no seu exercício cidadão de ir e vir, foi perseguida num supermercado. Quando a gente fala em genocídio da população negra, há uma tentativa sempre de tentar minimizar a pauta”, refletiu, relatando que até hoje, quase um mês depois do ocorrido, não conseguiu voltar a entrar em um supermercado grande.
São muitas as denúncias de casos desse tipo que chegam à Delegacia de Combate à Intolerância, conforme afirmou a escrivã Graziela Silva Souza e Silva. “Temos vários casos aqui envolvendo mercados e shoppings, e é bem complicada a investigação desses casos”, disse. Em 2022, das 617 ocorrências registradas na Delegacia, mais da metade (333 casos) referem-se a crimes de racismo, injúria racial ou outras ofensas relacionadas.
Mario Vieira, diretor da Escola Riograndense de Segurança, também frisou a gravidade da situação: “É crime abordar dessa maneira as pessoas, isso não pode ser feito. Precisamos interferir nessa discussão, para que os supermercados não continuem fazendo isso”. Representando o governo do estado, a Diretora do Departamento de Igualdade Étnico e Racial, Sanny Figueiredo, relatou sobre o trabalho realizado no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos e citou o recente caso de racismo em um voo da Gol. “Sinto falta das representações das associações dos supermercados e shoppings. Precisamos que eles nos ouçam”, destacou.
Além dos estabelecimentos comerciais precisarem ser responsabilizados, a advogada Pérola Sampaio, da Associação de Juristas pela Democracia, destacou o caráter racista do poder Judiciário. “O racismo é permanente nas nossas vidas e na nossa atuação. Mas nós não podemos naturalizar esse racismo estrutural, institucional que está colocado. Temos que combater com medidas pedagógicas severas, multas e fiscalização”, colocou. O esvaziamento da pauta racial nos termos de ajustamento de conduta (TAC) de estabelecimentos onde ocorreram casos de racismo foi criticado por Cláudia Dutra, do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (Codene).
“Essa discussão não é nova, mas agora estamos conseguindo denunciar, pautar. O problema não é de legislação, mas precisamos ter medidas administrativas, penais e cíveis para responsabilizar os estabelecimentos”, frisou Eduarda Garcia, do Núcleo de Pesquisa Antirracista da UFRGS. A importância da visibilidade da pauta foi apontada por Paulo Renato, da Rádio Negritude. “Queremos que os espaços sejam ocupados e a visibilidade seja proporcionada em todos os segmentos da sociedade”, ressaltou.
Como encaminhamento, Luciana Genro apontou a necessidade de se exigir cada vez mais dos estabelecimentos comerciais que “façam treinamentos, promovam a educação antirracista nos seus estabelecimentos, que coloquem pessoas negras em postos de comando”. O mandato da deputada irá elaborar um documento, contendo os relatos da audiência, para encaminhar às entidades que representam as associações comerciais.
Confira mais fotos: