A Comissão de Educação da Assembleia Legislativa promoveu, nesta segunda-feira (04/07), uma audiência pública para debater os problemas na política de implementação das Escolas Cívico-Militares (ECMs) no Rio Grande do Sul. A proposição foi das deputadas estaduais Luciana Genro (PSOL) e Sofia Cavedon (PT), atendendo a pedido do 39º Núcleo do CPERS, que ingressou com ação judicial exigindo a suspensão do processo de implantação do modelo – criado em 2019 por decreto do presidente Jair Bolsonaro – na rede pública gaúcha.
A primeira metade da audiência foi marcada por ânimos exaltados, incluindo gritos e acusações de parte dos presentes, especialmente apoiadores e funcionários de parlamentares da direita, que não puderam entrar na sala em função da lotação, mas que se mantiveram junto à porta tumultuando as falas de participantes da mesa que eram contrários à ECM. A deputada Luciana Genro, que conduziu a audiência, teve inclusive que interromper temporariamente a reunião. O deputado tenente-coronel Zucco (Republicanos) decidiu se retirar e convocou seus apoiadores a fazer o mesmo, quando então os ânimos se acalmaram e as discussões sobre o tema voltaram a ser realizadas. Antes disso, porém, a vereadora Comandante Nádia (PP), de Porto Alegre, acusou a esquerda de ser contra os militares, no que foi respondida por Luciana Genro: “Aqui na Assembleia quem defende os praças da Brigada Militar sou eu. A direita e o seu partido retiraram direitos dos policiais, como a verticalidade salarial e a promoção na reserva. A senhora defende só os oficiais, não os soldados”, rebateu a deputada.
Com a retomada dos trabalhos da audiência pública, os participantes da mesa que questionaram a implantação das ECM demonstraram receio com a interferência dos militares na gestão didático-pedagógica das escolas, e o principal argumento de quem defende o modelo foi de que quem não gosta das ECMs – sejam estudantes, responsáveis e mesmo professores – pode se retirar das mesmas. Luciana Genro se disse preocupada com a visão autoritária que o projeto traz, deslocada da realidade dos estudantes: “O modelo não respeita a autonomia das escolas, a pedagogia do ponto de vista das necessidades de uma escola democrática e que proporcione uma educação que tenha pluralidade”, criticou a deputada.
Ex-vice diretor e orientadora questionam votação do modelo em instituição da Capital
O processo de discussão e votação sobre a implantação do modelo de ECM na Escola Visconde do Rio Grande, de Porto Alegre, foi questionado pelo ex-vice-diretor Matheus Hernandes e pela ex-orientadora e docente da escola, Cíntia Bordini. Matheus alegou que não conseguiu apresentar outros modelos quando ocorreram as discussões sobre a ECM. Conforme ele, há modelos melhores, inclusive já utilizados em instituições locais, mas não lhe foi dado espaço para mostrá-los aos docentes e à comunidade escolar. Também afirmou que não ocorreram debates suficientes e que seria necessário quórum de 30% para escolha pelo modelo da ECM, o que não teria sido cumprido. Por não concordar com o andamento do processo, o educador decidiu se desligar da escola.
O ex-vice-diretor destacou o papel intervencionista das forças militares nos diferentes serviços nos setores públicos, sendo a educação uma delas. Ele acredita que as escolas militares têm sua função, mas que o modelo não deve ser transferido para a educação pública civil: “Nós trabalhamos com a inclusão das pessoas e esses modelos militares normalmente trabalham com a exclusão dos indivíduos”, considerou.
A professora Cíntia revelou ter sido perseguida e transferida da escola por questionar a implantação da ECM, mesmo trabalhando com a Educação de Jovens e Adultos (EJA), que não faz parte do programa. Ela classificou o projeto como “ilegal e imoral”, já que, de acordo com ela, persegue quem pensa diferente. Além disso, citou denúncias de estudantes contra militares, relativas a ameaças, vias de fato, submissão, constrangimento e mesmo assédio em ECMs no Paraná e Amazonas. “Esse projeto não tem base em estudos pedagógicos nem estatísticos, só possui fator ideológico e arcaico”, criticou.
Segundo a ex-orientadora, professores solicitaram reunião para discutir com maior profundidade o tema, visto que se modificaria o Projeto Político Pedagógico (PPP) e a escola teria que funcionar com três projetos distintos, já que o modelo da ECM não abrange séries iniciais nem ensino noturno, mas não foram atendidos. Também não houve convocação do Conselho Escolar para votação, o total de votantes não foi divulgado e as turmas não atingidas pelo programa não puderam votar, conforme Cíntia.
“Mais grave é a forma e o tempo açodado em que a diretora convocou a comunidade para votar, sem direito ao contraditório, sem debate, sem respeitar a lei de gestão democrática do ensino, no final de ano, onde professores se preocupavam com o registro de avaliações, alunos que já não estavam indo às aulas pois já estariam aprovados ou que nem haviam comparecido às aulas presenciais ainda”, contou.
Diretora do CPERS destaca entendimento de procuradores sobre inconstitucionalidade da ECM
A diretora licenciada do 39° Núcleo do CPERS, Neiva Lazzarotto, contou ter sido procurada por professores da Escola Visconde do Rio Grande em dezembro para tratar do processo de adesão ao Programa Nacional das ECMs. Na ocasião, visitou a instituição e conversou com a direção algumas vezes sobre o tema. Para ela, “as ECMs contradizem toda a defesa da escola pública, laica e historicamente defendida pelos educadores e entidades e setores ligados à educação”.
Neiva se posicionou contra a concepção do modelo da ECM, criado sem qualquer debate com a sociedade, cujos objetivos seriam melhorar a qualidade da educação, corrigir a evasão e acabar com a violência, ao colocar policiais militares aposentados como monitores nas escolas públicas. A integrante do CPERS destacou o entendimento da Comissão Permanente de Educação (Copeduc) do Grupo Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado ao Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG), que elaborou, em 2021, emenda contra o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim). O posicionamento afirma que o programa “fere os princípios constitucionais da reserva legal e da gestão democrática do ensino público, bem como aqueles fixados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e pelo Plano Nacional de Educação”. A Comissão Permanente de Educação é composta por membros dos Ministérios Públicos Federal e Estaduais.
Advogado afirma que modelo da ECM não existe do ponto de vista jurídico
O advogado do 39ª Núcleo do CPERS, Jefferson dos Santos Alves, responsável pela ação judicial sobre o tema, explicou que “a ECM, do ponto de vista do direito, é simplesmente uma ficção”.
Segundo ele, o decreto presidencial que institui a política das ECMs foi criado sem qualquer base, nem do ponto de vista da legislação, nem com o debate público necessário para criação de um projeto desse tipo, onde se discute modelos pedagógicos. Jefferson citou o artigo 214 da Constituição, sobre o Plano Nacional da Educação, que trata da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que dita não só as normas mas todo o projeto e formas do ensino na educação pública.
“O que o decreto do presidente faz é simplesmente esquecer que ele precisa observar essa lei e faz um decreto autônomo, que não existe, via de regra, no ordenamento jurídico brasileiro, e cria, do nada, sem discussão, um novo modelo”, explicou. A Constituição diz que apenas a lei, e não decreto, pode estabelecer o Plano Nacional da Educação, que discute o modelo didático-pedagógico aplicado às escolas civis no Brasil.
Outro ponto importante levantado pelo advogado foi que ECM não é escola militar, pois é um modelo completamente diferente, sendo que as escolas militares têm inclusive legislação própria e são subordinadas ao Ministério da Defesa.
Além disso, o próprio manual da ECM desmente o que foi falado por seus defensores na audiência, que não haveria interferência no projeto didático-pedagógico nas instituições de ensino. O advogado leu o artigo 5º do documento, que cita como diretrizes a utilização de modelo baseado nas práticas pedagógicas dos colégios militares do Comando do Exército. A diretora licenciada do CPERS também salientou que é prevista a colocação de militares na assessoria das direções, o que se caracterizaria como intervenção pedagógica.
O decreto passa por cima da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no RS também ignora a Lei da Gestão Democrática do Ensino Público, que define que a comunidade escolar deve ser ouvida e não a comunidade em geral, como está no decreto, segundo Jefferson. “Me espanta muito que representantes eleitos através de processo democrático digam nesta comissão, nesta audiência pública, que quem não estiver contente que saia das escolas, porque isso não é democrático”, reforçou.
O ponto de vista dos estudantes também foi ouvido na audiência pública. O diretor da União Gaúcha dos Estudantes Secundarista (UGES), Pedro Feltrin, disse que o modelo de Escolas Cívico-Militares não foi debatido com os alunos da rede pública. Denunciou, ainda, casos de abuso e censura que já ocorreram em outros estados, como no Amazonas, onde um aluno foi submetido a castigo por monitores militares. “A militarização tem sido uma política imposta às escolas públicas. A resposta para os problemas que as escolas enfrentam não é o militarismo”, criticou, acrescentando que um bom modelo a ser adotado é o dos Institutos Federais, que reúnem Ensino Médio, Ensino Tecnológico e Ensino Superior.
Como encaminhamento da audiência, a deputada Luciana Genro se colocou como apoiadora na luta para barrar o projeto, se disponibilizando a pedir informações ao Executivo estadual sobre a interferência militar nas diretorias em ECMs gaúchas, bem como acompanhar o andamento da ação judicial impetrada pelo 39º Núcleo do CPERS.
Estiveram presentes ainda na atividade o deputado Eric Lins (PL), o vereador Jonas Reis (PT); o presidente em exercício do CPERS, Alex Sarat; o coordenador do Programa das Escolas Cívico-Militares no RS, Marcelo Borella; a ex-secretária de Educação de Porto Alegre, Esther Grossi; os professores Felipe Adami (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior – ANDES), Aline Lemos (Faculdade de Educação da UFRGS), Leonor Ferreira e Terezinha Bullé da Silva (CPERS).