Audiência pública proposta pela deputada Luciana Genro ocorreu no Plenarinho da Assembleia. Foto: Paulo Garcia | Agência ALRS
Audiência pública proposta pela deputada Luciana Genro ocorreu no Plenarinho da Assembleia. Foto: Paulo Garcia | Agência ALRS

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Em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos, promovida pela deputada Luciana Genro (PSOL) nesta segunda-feira (07/03), migrantes e refugiados relataram as discriminações e dificuldades que enfrentam ao chegarem ao Brasil vindos da África e do Haiti. Estudantes e trabalhadores do Congo, Senegal, Angola, Guiné Bissau e Haiti pediram por mais políticas públicas, acolhimento, valorização e oportunidades. A audiência foi proposta por Luciana Genro como encaminhamento do ato que ocorreu em Porto Alegre após a morte do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro.

Na audiência, que ocorreu no Plenarinho da Assembleia Legislativa de forma híbrida, o assassinato de Moïse foi citado ao lado do de brasileiros negros, para explicitar o racismo pelo qual as populações negras passam no país. “Casos de violência de Estado são recorrentes contra nossos corpos, em coisas banais como ir ao supermercado. No Big, uma criança de 12 anos foi humilhada por parte da equipe de segurança. Aqui em Porto Alegre, temos como caso mais emblemático e terrível o assassinato do João Alberto Freitas no Carrefour, em 2020”, colocou Onir Araújo, advogado e integrante da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul.

Estudante congolesa Gaelfie questiona falta de políitcas públicas para migrantes.

Onir mencionou as discriminações que migrantes sofrem também ao procurar emprego, sendo alvo de trabalho informal e até mesmo trabalho análogo à escravidão. A congolesa Gaelfie Ngouaka, integrante do coletivo Bará e estudante de Saúde Coletiva na UFRGS, também mencionou o aspecto trabalhista ao citar a morte de seu “irmão congolês. “O sistema não nos defende, apesar de ter uma lei estabelecida sobre trabalhador. Mas não é aplicada. É sempre um imigrante negro que é explorado. Moïse foi reclamar por falta de um pagamento e morreu por isso. Mesmo quando formada, eu não sei se vou conseguir um emprego, pois sou uma imigrante negra”, apontou.

A falta de acesso a políticas públicas básicas, como regulamentação pela Polícia Federal e atendimento em postos de saúde, também foi um aspecto mencionado pela estudante. “O grande problema são as políticas públicas que faltam pra gente. Eu chego na Polícia Federal e sou mal recebida, no posto de saúde não consigo ser atendida direito”, apontou. Januário Gonçalves, da Associação dos Imigrantes Angolanos, vive há 30 anos no Rio Grande do Sul e constata diariamente a luta em relação aos direitos dos imigrantes negros.

“O imigrante branco, espanhol, italiano, alemão, é exaltado. Mas o imigrante negro é desvalorizado. Então nós sofremos muito. Eu tenho que sair de casa sempre bem arrumado”, colocou Januário, lembrando do caso do imigrante angolano Gilberto de Andrade, que foi vítima de violência policial em Gravataí, onde levou tiros, foi preso e sua amiga (brasileira) foi morta.

Em casos como o de Gilberto, de Moïse e de brasileiros negros que sofrem violência, parte da população tende a culpar as vítimas, como apontou Chidelson Philippe, da Associação dos Haitianos. “Quando Moïse foi assassinado, disseram que ele era vagabundo. A gente não tem o direito de ser lembrado quando a gente sofre. A Marielle Franco também, disseram que era casada com traficante. A solidariedade é seletiva”, destacou. Na mesma linha, Bamba Toure, da Associação dos Imigrantes Senegaleses, questionou se não haveria mais comoção caso imigrantes italianos e portugueses sofressem as mesmas discriminações que os africanos e haitianos sofrem no Brasil. “Faltou acolhimento que Brasil deveria dar”, constatou.

Bamba Toure apontou falta de acolhimento por parte do Brasil.

Soluções e proposições

A procuradora do trabalho Ana Lúcia Stumpf González, que representou o Ministério Público do Trabalho (MPT), relatou que foi instaurado um inquérito civil na Procuradoria Regional da 5ª região para apurar as questões trabalhistas no assassinato de Moïse. “Temos casos persistentes no nosso país de questões trabalhistas com pessoas de pele negra. Sabemos de muitos casos de questão do trabalho rural e doméstico em condições degradantes que caracterizam trabalho escravo”, apontou.

Neste quesito, a deputada Luciana Genro destacou dois projetos de lei de sua autoria que foram rejeitados pela Assembleia Legislativa e que poderiam contribuir na luta contra o racismo e a xenofobia: o PL 211/2020, que previa o uso de câmeras em fardas e viaturas policiais, e o PL 37/2019 que punia economicamente empresas flagradas em trabalho infantil e do trabalho análogo à escravidão. “É uma demonstração de como esses temas que mexem com estruturas de discriminação, de racismo, tem dificuldade de transitar num ambiente institucional e branco como a Assembleia. Mas vamos reapresentá-los e seguir pressionando para que os projetos sejam aprovados”, garantiu a parlamentar.

Representando a Secretaria de Justiça e Sistema Penal e Socioeducativo do RS, a servidora Bibiana Campana relatou o trabalho feito pelo Comirat (Comitê Estadual de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas no Rio Grande do Sul), que atualmente está debatendo a formulação de um projeto de lei para estabelecer diretrizes para proteção de imigrantes e refugiados. A necessidade de haver mais ações afirmativas e políticas públicas foi reiterada pela delegada Andrea Mattos, diretora da Delegacia de Combate à Intolerância. “O racismo ainda ocupa a primeira posição das nossas ocorrências. O que tenho colocado é que denunciem, mesmo em caso de dúvida. Procurem a delegacia, conversem conosco”, afirmou.

Audiência reuniu migrantes de diversos países, gestores e órgãos públicos.

O defensor público Andrey Melo, que coordena o recém criado Núcleo de Defesa da Igualdade Racial, colocou o trabalho da Defensoria Pública à disposição dos migrantes. “Tivemos o episódio do João Alberto e outros casos muito graves, como a morte do jovem Gustavo Amaral em Marau. Isso só ocorre porque o imaginário social no Brasil caracteriza o corpo negro como suspeito. Isso é algo que precisamos enfrentar de forma muito efetiva e robusta. São problemas que acompanham a formação social do Brasil e que precisam ser enfrentados”, destacou.

A vereadora de Porto Alegre Fran Rodrigues (PSOL), que também integra o Diretório Central dos Estudants (DCE) da UFRGS, colocou a entidade à disposição dos estudantes africanos e haitianos. “O racismo é estrutural no país, precisamos de medidas efetivas na sociedade em que estamos para combater o racismo”, apontou.

“Estamos sofrendo enquanto estudantes negros”

O Emancipa Santa Rosa de Lima realiza um trabalho de acolhimento a migrantes e refugiados na Zona Norte, onde vivem principalmente haitianos e venezuelanos. A coordenadora Fátima Cardoso relatou que a equipe percebe a falta de políticas públicas para atender essas populações: “Sem atuação dos governos, os próprios migrantes fazem suas redes de acolhimento. O Emancipa Santa Rosa de Lima acolhe essa demanda. Em 2019, começamos o processo de pelo menos dizer pro poder público olhar para os imigrantes. A discriminação é real, mas não vista pelos brasileiros”.

Após as falas da mesa, mais dois estudantes migrantes se pronunciarem na audiência. Jenny Ylerat, que é haitiana, disse que aguarda que haja justiça por Moïse e pelas vítimas de racismo e xenofobia. “Estamos sofrendo enquanto estudantes negros. Tem tantos outros casos que não são mostrados. Nosso objetivo é justiça. Isso nos deixa com medo, infelizmente, e esse medo nos traz raiva, e a raiva traz o ódio, e o ódio, sofrimento. Estamos pensando como vai ser o nosso futuro. A gente quer que vocês parem de nos matar”, disse.

Dificuldades e discriminações enfrentadas por migrantes foram relatadas. Foto: Paulo Garcia | Agência ALRS

O estudante Cam-Naté Augusto Bissindé, da Guiné Bissau, relatou que os imigrantes pretos, tanto africanos como caribenhos, chegam aqui e são vistos como incapazes: “Tem pessoas que chegam aqui já formados, capacitados, e são ignorados”. O presidente da Associação de Integração Social, o migrante haitiano James Charles, sugeriu a criação de uma Frente Parlamentar ou um comitê com a presença de migrantes negros de diversas nacionalidades.

Como encaminhamento, a deputada Luciana Genro sugeriu a criação de um grupo de trabalho, formado por associações de migrantes com a participação do seu mandato, para buscar desenvolver propostas de políticas públicas, acolhimento, formular projetos de lei para apresentar na AL. Da mesma forma, a deputada irá encaminhar ofícios para os diversos órgãos governamentais questionando quais iniciativas e programas estão em andamento voltadas para essas populações.