Visitas sociais presenciais estão liberadas, mas sem contato físico | Foto: Divulgação Seapen/Susepe
 Visitas sociais presenciais estão liberadas, mas sem contato físico | Foto: Divulgação Seapen/Susepe

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Há cerca de um ano, ao enfrentar as dificuldades no acolhimento e atendimento às pessoas no sistema prisional, Lisiane Pires, familiar de um detento, criou uma comissão de apoio a familiares no município de Bento Gonçalves. Atualmente, o trabalho dela se multiplicou e cresceu a ponto de ela coordenar a Frente dos Coletivos Carcerários, que está presente em 46 das 154 casas prisionais do Rio Grande do Sul, prestando apoio às famílias e lutando por melhores condições para as pessoas privadas de liberdade. Nesta quarta-feira (22), as deputadas Luciana Genro (PSOL) e Sofia Cavedon (PT) promoveram audiência pública na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos para tratar da situação carcerária do estado, a partir do trabalho da Frente.

A deputada Luciana Genro, que é advogada, afirmou ter uma preocupação muito grande com o sistema carcerário brasileiro e gaúcho, que “estão muito longe de promover a ressocialização que se propõe a fazer”. Ao mesmo tempo em que o sistema falha em ressocializar os detentos, ele acaba promovendo um controle social, julgando as pessoas muitas vezes pela cor da pele ou pelas roupas, e vitimizando também as famílias dos detentos. “Os familiares das pessoas em situação de cárcere vivenciam esse drama cotidianamente. Sem terem cometido nenhum crime, pagam também uma pena muito elevada diante das dificuldades que encontram nas visitas e para assegurar os direitos dos seus familiares. Essa audiência surgiu a partir da demanda de famílias que têm se organizado pra garantir os seus direitos”, colocou.

Luciana Genro, proponente da audiência, apontou que os presídios falham na ressocialização das pessoas em cárcere.

Segundo Lisiane, atualmente a Frente conta com amplo apoio de diversos setores do Judiciário, como a Defensoria Pública, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, e também já dialoga com a Susepe (Superintendência de Serviços Penitenciários). “Quando eu comecei esse trabalho, era difícil chegar ao sistema prisional sem conhecimento, sem amparo, sem informações, e totalmente marginalizada. Hoje temos uma amplitude maior a nível estadual e estamos trabalhando para chegar a todas as casas prisionais”, afirmou.

As familiares buscam dialogar com o poder público, e agora também com a Assembleia Legislativa, pedindo para serem ouvidas na criação de leis, portarias e tomada de decisões referentes à situação carcerária. “Nós somos o chão de fábrica, entendemos que vivenciamos a realidade e temos propriedade e interesse nessas construções. Temos um lema que é ‘nada pra nós sem nós’, ou seja, não construam mais nada sem a nossa participação. Temos condições de contribuir para melhorar as condições do sistema prisional”, afirmou Lisiane. Elas pediram ajuda dos deputados para que sejam realizadas formações que proporcionem um tratamento mais humanizado por parte dos agentes penitenciários, os quais muitas vezes têm “uma mentalidade opressora e marginalizante” em relação aos detentos.

Em sua maioria, são mães, esposas e filhas de detentos que compõem a Frente. São elas que mais visitam seus familiares nos presídios e acompanham de perto a realidade da privação de liberdade. “A fragilidade do sistema prisional, com ausência de políticas públicas para os internos e de apoio para os familiares é uma carência histórica, que muitas vezes ajuda a fortalecer as facções”, colocou a Coordenadora de Pesquisas da Frente, Ana Carolina Proença. Mestranda em Direito, com uma pesquisa focada justamente nos familiares de detentos, Ana Carolina destacou que o coletivo busca zelar pelo atendimento adequado aos usuários do sistema prisional, realizando enfrentamento ao encarceramento desumano e degradante, além de buscar ser um ambiente de confiança para acolhimento de denúncia das familiares.

Ana Carolina se aproximou da Frente a partir de seu mestrado e atua como Coordenadora de Pesquisas.

Uma das principais demandas imediatas da Frente é a mudança nas visitas sociais, que atualmente, devido à pandemia do coronavírus, não permitem contato físico. As visitas íntimas já estão liberadas, mas a visita social não permite que mães, irmãs e filhas abracem ou toquem em seus familiares nas prisões. Ainda, crianças e gestantes não estão liberadas para realizar as visitas, o que também é reivindicando pela Frente, que pede que as grávidas possam visitar nas mesmas condições dos idosos, com comprovante de vacinação. Neste sentido, a vice-coordenadora do Conselho Tutelar de Porto Alegre, Cris Medeiros, chamou atenção para os direitos das crianças de visitarem seus parentes.

Ao mesmo tempo, a conclusão da imunização para todos os detentos e detentas também é pautada. As integrantes pleiteiam uma reunião com o Secretaria de Saúde e com a Susepe para apresentar essa demanda, solicitando apoio dos parlamentares na pauta. A Frente ainda requere a instalação da Ouvidoria Penitenciária do RS, prevista em lei desde 2017, que dispõe sobre a participação, proteção e defesa dos direitos dos usuários, e a colocação de unidades básicas de saúde (UBS) nas maiores casas prisionais. Atualmente, os agentes penitenciários não utilizam crachá de identificação, o que é também reivindicado pelas familiares. “É um escândalo que não exista essa identificação”, opinou Luciana Genro.

O Procurador de Justiça na Fiscalização de Presídios, Gilmar Bortolotto, frisou que as políticas públicas para o sistema prisional são fundamentais em frente do fato de que, atualmente, acontece dentro dos presídios a captação de mão de obra por organizações criminosas, as facções. “Elas acabam fornecendo para quem está detido coisas que têm a ver com necessidades básicas, e isso gera um sentimento de gratidão. Os presos são mais gratos a essas organizações do que ao Estado”, colocou, acrescentando que a taxa de reencarceramento no estado é muito alta. “A criação de vagas é necessária, mas sempre será insuficiente. Porque falta o essencial. Fazer projeto pro sistema prisional sem ouvir os atores é jogar dinheiro fora, é fomentar a reincidência”, apontou.

O Procurador Gilmar Bortolotto destacou que criar vagas não é o suficiente para resolver os problemas do sistema prisional.

Muitos dos pleitos trazidos pela Frente são previstos em lei, mas nunca foram aplicados, apontou a defensora pública Cintia Luzzatto, dirigente do Núcleo de Defesa em Execução Penal. A defensora sugeriu que na escola que forma os agentes penitenciários seja incluída uma disciplina focada no trato humanitario, inclusive com a presença de um representante da Frente. O juiz-corregedor Alexandre Pacheco, que representou o Tribunal de Justiça, sugeriu a criação de um conselho gestor de execução criminal, que contemple a representatividade das instituições públicas e das organizações da sociedade civil. “Precisamos buscar a efetividade da pena de prisão, e a principal função é a reinserção social. Isso precisa ser feito para que nós evitemos o reingresso. Como está hoje, acabamos jogando querosene no combustível”, disse.

A saúde nas casas prisionais é uma preocupação constante do Departamento de Tratamento Penal da Susepe, afirmou a representante do órgão, Camila Rosa. Ela garantiu que a ampliação das regras nas visitas está sendo discutida com a Secretaria de Saúde e que, com o avanço da vacinação, é possível que haja mudanças em breve. A promotora de Justiça Adriana Cruz da Silva também se mostrou otimista em relação a isso. “Estamos fazendo visitações a presídios e vai ser aberto esse expediente, na última inspeção averiguamos que vários presídios já haviam implementado a primeira dose da vacinação. Traremos boas notícias a todos, em quase todas as unidades da grande Porto Alegre serão aplicadas as segundas doses e poderemos ampliar a visitação”, assegurou. Ela também convidou a Frente para uma audiência na Promotoria, para que as demandas possam ser encaminhadas pelo Ministério Público.

A ativista Ana Paula Saugo, que é egressa do sistema prisional, fez uma fala emocionante sobre a realidade dos presídios. “Todos os direitos fundamentais são violados lá dentro. Vi muita tortura, suicídios, propinas. Enquanto houver um sistema que viole direitos básicos e fundamentais, a criminalidade aqui fora vai aumentar e a ressocialização não vai acontecer”, afirmou. Ela também reiterou a importância das visitas para quem está privado de liberdade. “A visita é o alimento dos presos, é de extrema importância”, colocou.

Participantes da audiência apontaram falha em ressocializar nos presídios. Foto: MP-RS.

Os encaminhamentos dados pela audiência, resumidos pela deputada Luciana Genro ao final do encontro, foram: a realização de uma agenda com representantes da Secretaria de Segurança Pública (SSP) para apresentação e reconhecimento da Frente; a elaboração de ofício para a SSP com a demanda da criação da nova ordem de serviço de retomada das visitas, com a liberação da visita com contato social; liberação das visitas de gestantes nas mesmas condições dos idosos e retorno das visitas das crianças; a formação para servidores penitenciários focada no trato humanizado e o alinhamento de normas internas da Susepe nesse sentido; a identificação dos servidores penitenciários, com crachás com nomes; o funcionamento da Ouvidoria Penitenciária, prevista em lei; e a formação de um conselho que reúna todos os envolvidos na gestão prisional para agilizar os encaminhamentos e demandas.

“Essa audiência é um primeiro passo para que a gente traga para a Assembleia esse tema da situação carcerária e dos apenados e das apenadas. Vamos continuar nessa caminhada buscando garantir os direitos humanos e os direitos legais de todos e todas. Não podemos permitir que siga essa terra sem lei que nós não tenhamos respeitados os direitos dos que estão privados de liberdade”, finalizou Luciana Genro.