| Antirracismo | frente parlamentar | Matriz Africana | Notícias

A violência da fome e os direitos dos povos de matriz africana à segurança alimentar foram tema de uma audiência pública realizada nesta quarta-feira (02) na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. A reunião ocorreu após solicitação da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos de Matriz Africana, que é coordenada pela deputada estadual Luciana Genro (PSOL).

A parlamentar destacou que a fome, que sempre foi uma realidade no país, se acentuou durante a pandemia e afeta de forma ainda mais dramática os povos tradicionais de matriz africana.

Deputada Luciana Genro coordena a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos de Matriz Africana.

“Nos terreiros são produzidos alimentos para ofertar a todos os filhos. Mas com o fechamento destes espaços, os povos tradicionais de matriz africana sofrem com a insegurança alimentar agravada pela pandemia”, disse Luciana Genro.

Para a deputada, é preciso haver um diálogo entre as instituições responsáveis pela defesa da segurança alimentar e os órgãos públicos que realizam a inclusão de famílias necessitadas junto ao Cadastro Único do governo para que “se viabilize, de forma urgente, a entrada dessas famílias tradicionais de matriz africana nos programas sociais”.

Representando a Defensoria Pública da União, Daniel Cogoy explicou que em 2020 uma Ação Civil Pública foi ajuizada solicitando a entrega de cestas básicas para as comunidades tradicionais quilombolas e de religiões de matriz africana.

“Tivemos a liminar concedida, mas houve um recurso de agravo pelo governo federal e a liminar foi caçada antes de ser cumprida. O recurso foi julgado na última sessão do ano, revertemos a decisão e ela está sendo cumprida parcialmente. O que recebemos das comunidades é que o número não representa nem de perto a quantidade de famílias que precisa dessa cesta básica”, expôs o defensor público.

Cogoy entende ser necessário a retirada destas comunidades da invisibilidade, pensando alternativas para serem incluídas no Cadastro Único e contemplados não somente com essas, mas outras políticas públicas. Já a defensora pública dirigente do Núcleo de Defesa de Direitos Humanos da Defensoria Pública do RS, Aline Guimarães, lembrou que a necessidade dessa discussão demonstra quão equivocada é a ideia de que a pandemia atingiria a todos igualmente. O Ministério Público estadual também se fez presente através da Coordenadora do Centro de apoio operacional dos Direitos Humanos, da Saúde e da Proteção Social, com a procuradora de Justiça Angela Salton Rotunno.

Kota Mulanji, coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana (FONSANPOTMA), lembrou que os povos tradicionais têm consciência política, social, econômica e ambiental própria e as Unidades de Território Tradicional são mantenedoras da alimentação de muitas pessoas.

“Quando se tem comida em uma UTT, todos em torno se alimentam. A solidariedade sempre foi exercida por nós, invisivelmente. O vírus foi só um revelador de desigualdades. O Legislativo tem tido um papel de extrema importância nesta luta, pois é o grande espaço de preservação dos direitos de quem tem seus direitos violados”, afirmou Kota.

Juliano de Sá, presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS (Consea-RS), contou que ainda no ano passado o órgão identificou o sério problema de invisibilidade e não reconhecimento dos povos tradicionais, em especial de matriz africana. Salientou a necessidade de reparação destes dados no CadÚnico e pontuou que sem visibilidade fica difícil mensurar politicas publicas eficientes.

 A coordenadora estadual do FONSANPOTMA, Itanajara Almeida, recordou o processo de luta que teve início ainda em 2020 e envolveu diversas frentes, mas que até agora não avançou. “Nada foi feito por parte do estado. E nós estamos aqui, ainda aguardando a posição em relação à necessidade de um cadastramento que reconheça a existência dos povos tradicionais e os contemple com alimentação. Hoje estamos dando conta de muitas famílias que já não têm mais o que dar aos seus filhos, de uma forma fraterna e solidaria, e parece ser ironia, porque somos a tradição que mais alimenta pessoas: que pertencem e não pertencem às religiões de matriz africana,” desabafou.

Iyá Vera Soares, que faz parte da Coordenação Nacional de Mulheres do FONSANPOTMA, frisou a importância de todas as autoridades, parlamentares, da Justiça, babás e Iyás, em buscar a implementação de leis que ficam nas gavetas. “Ações da sociedade civil organizada, dos povos tradicionais, dos parlamentares que são comprometidos, nós já temos. Agora tem que implementar as políticas públicas engavetadas. Seguimos lutando pela soberania alimentar. Precisa reparar, precisa implementar. As canetas que estão na mão de cada uma dessas autoridades farão a diferença,” afirmou a Iyá.

Diversas entidades e movimentos sociais ligados à luta pela segurança alimentar dos povos tradicionais de matriz africana participaram da reunião.

Representando o Emancipa Santa Rosa de Lima, Fátima Cardoso conta que a ONG recebe relatos de dificuldades também na manutenção dos espaços religiosos, que sem a possibilidade de realizar suas ritualísticas veem a arrecadação necessária diminuir drasticamente, ao mesmo tempo em que sofrem com o preconceito. Ela destacou as dificuldades de inclusão das famílias no Cadastro Único, assim como em conseguir atendimento eficaz nos CRAS.

“Hoje o CadÚnico é feito no CRAS, mas quem determina quem recebe é em Brasília e a maioria das vezes o sistema não funciona. Precisamos debater, diante das questões logísticas que dificultam a distribuição de cestas básicas, a implementação de um cartão ou uma forma que torne mais prático o acesso dessas famílias a essa política,” afirma.

Roberto Alexandre dos Santos, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RS, colocou a organização à disposição para que se avance nas ações que busquem enfrentar a dificuldade que, no momento, é a falta de comida em diversos lares, em especial os periféricos. Destacou, ainda, a necessidade de uma ação conjunta entre poderes e comunidade.

Falando pela Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Otávio Pedeli se comprometeu em levar os apontamentos e a urgência da pauta para a secretária Regina Becker, para que a pasta pense uma ação eficaz para a introdução dessas famílias no CadÚnico, reconhecendo essa parcela da população. Afirmou que ainda em junho 10 mil cestas básicas serão distribuídas pela secretaria e que o governo está atento para suprir as carências alimentares das populações de matriz africana.

A fome não espera!

Como encaminhamentos, serão cobrados a cumprir a determinação judicial que, por hora, contempla 323 famílias (que são as cadastradas no Cadastro Único). Além disso, uma reunião entre Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos e FONSANPOTMA será encaminhada para tratar da pauta e formas de resolver as questões logísticas que empacam a distribuição das cestas básicas já conquistadas, já que existe o dinheiro, existem as cestas, mas o que se comprova é uma dificuldade em realizar a entrega conforme determinado judicialmente.

A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos de Matriz Africana da Assembleia Legislativa enviarão ofício à Casa Civil informando todas as necessidades, solicitando ao governo do estado que cumpra com a decisão judicial, realize um levantamento de forma mais ampla e que apresente se existe uma proposta de programa específico para atender as comunidades tradicionais de matriz africana.

A prefeitura de Porto Alegre também deve ser oficiada acerca das famílias que precisam ser credenciadas com urgência no CadÚnico. Os deputados ainda propuseram uma audiência pública para tratar, com exclusividade, das questões referentes ao Cadastro Único.