Artigo do jornalista Bruno Boghossian, originalmente publicado na Folha de São Paulo em 22/01/2020.
A Polícia Federal ouviu as 1.285 palavras trocadas entre Glenn Greenwald e um dos hackers de Araraquara no último dia 7 de junho. O delegado não viu provas contra o jornalista e anotou que ele manteve na conversa “uma postura cuidadosa e distante”. Já o procurador Wellington Oliveira realizou a façanha de analisar o mesmíssimo diálogo e denunciar o repórter por três crimes.
O contorcionismo do Ministério Público Federal para alvejar Glenn mostra como uma corporação é capaz de manipular o sentido das leis para proteger seus próprios integrantes e perseguir quem incomoda.
O procurador ignorou o fato de que o jornalista não era sequer investigado pelo hackeamento de autoridades como Sergio Moro e a força-tarefa da Lava Jato. Preferiu distorcer diálogos que, na verdade, desmontam sua própria tese.
O responsável pela denúncia argumentou que Glenn recebeu material de sua fonte enquanto o grupo continuava acessando ilegalmente conversas de outros personagens. A investigação, porém, aponta que as mensagens utilizadas pelo jornalista haviam sido obtidas anteriormente.
A lei, aliás, não permite a responsabilização de qualquer pessoa por simplesmente ter conhecimento de um crime. Além disso, a gravação usada como única prova na denúncia indica que Glenn não estimulou ou direcionou o hackeamento.
A acusação é tão frágil que o procurador se obrigou a deturpar o trecho em que um dos integrantes do grupo pergunta a Glenn se deve apagar as mensagens roubadas.
O jornalista disse que não poderia orientá-lo e acrescentou apenas que ele poderia deletar o material para que seu papel como fonte fosse preservado. Trata-se de um preceito gravado na Constituição, mas o procurador forçou a barra e pintou o trecho como se fosse uma manobra para dificultar as investigações.
O autor da acusação atropelou princípios para defender os interesses corporativos de seus colegas da Lava Jato, atingidos pelas revelações feitas por Glenn. A tentativa de intimidação é a prova de que a liberdade de imprensa é essencial para evitar abusos de poder.