*Artigo do jornalista Lira Neto, originalmente publicado na Folha de São Paulo em 06/08/2017.
No início do século 20, o delegado Francisco Cardoso se vangloriava de ser o maior inimigo dos “vagabundos” do bairro carioca do Estácio, berço do moderno samba urbano. Com ele, não havia conversa. Baseado na letra do Código Penal então em vigor, despachava para o xilindró todos os que não tivessem “profissão, ofício ou qualquer mister, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo”. Quem fosse visto batendo perna na rua era enquadrado na chamada “Lei da Vadiagem”.
Promulgada em 1890, dois anos após a abolição, a lei apontava para alvo prioritário: ex-escravos ou descendentes de cativos que, por força da desigualdade, não haviam encontrado lugar na nova lógica do mercado de trabalho. O suspeito, geralmente pobre e preto, era apanhado pela gola e conduzido debaixo de vara à delegacia. Os próprios policiais encarregados da captura atuavam como testemunhas de acusação.
A versão dos meganhas ganhava estatuto de prova irrefutável. Eventuais testemunhas de defesa eram ouvidas por mera formalidade. O inquérito subia para a Justiça e os magistrados invariavelmente desprezavam quaisquer depoimentos que contrariassem a narrativa dos policiais, alegando que as declarações a favor do réu visavam apenas safá-lo do alcance da lei.
Entre as vítimas do delegado Cardoso, contava-se bom número de bambas do Estácio. Negros, em sua maioria. Os arquivos policiais do princípio do século passado, hoje sob a guarda do Arquivo Nacional, estão atulhados de inquéritos assinados por delegados e juízes que olhavam para os primeiros sambistas –pretos e miseráveis– como criminosos em potencial.
Um século depois, a criminalização automática de afrodescendentes persiste. Atualmente, dois em cada três presidiários no Brasil são negros. Desse universo, a maioria absoluta é composta por homens entre 18 e 29 anos, segundo dados do Ministério da Justiça. Na semana que passou, a seletividade do sistema penal brasileiro ficou escancarada por um caso paradigmático: a manutenção na cadeia do jovem Rafael Braga, o único indivíduo condenado no bojo das grandes manifestações de junho de 2013.
Rafael se enquadra no perfil majoritário da população carcerária: negro, pobre, suburbano, de pouca vida escolar e egresso do sistema prisional. Em 2013, foi detido quando de um dos protestos no Rio de Janeiro, acusado de portar “materiais incendiários”: duas embalagens plásticas, uma de desinfetante, outra de água sanitária. Arrastado à delegacia pela polícia, afirmou que não participara da manifestação, que não tinha interesse por política e que, passando no local por acaso, levava os materiais de limpeza para uma tia.
Sua história, porém, foi confrontada pela versão dos policiais que o capturaram. Estes disseram que os bocais das embalagens estavam munidos de trapos de flanela, como se fossem pavios de uma bomba caseira incendiária. Rafael negou. As embalagens estariam lacradas. De nada adiantou o laudo técnico do esquadrão antibombas indicar que, obviamente, garrafas plásticas não se estilhaçam ao serem lançadas e que desinfetante e água sanitária não têm a “mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov”. A despeito disso, Rafael foi condenado a cinco anos de prisão.
No final de 2015, a pena progrediu para o regime aberto. Rafael arranjou um emprego, sendo monitorado por tornozeleira eletrônica. Um mês depois, saiu de casa de bermudas, a fim de comprar pão para a mãe, quando foi abordado por policiais militares, que o prenderam sob acusação de tráfico de drogas.
Afirmaram ter encontrado com ele uma sacola com 0,6 gramas de maconha e nove gramas de cocaína. Rafael disse estar de mãos vazias. A palavra de uma testemunha de defesa foi ignorada, pois a Justiça considerou que esta visava “tão somente eximir as responsabilidades criminais do acusado”.
Portanto, com base apenas nos depoimentos dos policiais -considerados “prova robusta” no texto da sentença-, Rafael foi condenado novamente, desta vez a 11 anos de prisão. Na última terça-feira (1º), foi posto em votação um pedido de habeas corpus a seu favor, no Tribunal de Justiça do Rio. Dois dos três desembargadores votaram pela manutenção da pena. O terceiro pediu vistas do processo. Enquanto isso, Rafael segue preso em Bangu, alimentando as estatísticas perversas que incidem sobre outros jovens iguais a ele, pretos, pobres e periféricos.
O delegado Cardoso ficaria orgulhoso de seu legado.