*Artigo de Luciana Genro publicado originalmente no HuffPost Brasil em 25/08/2017.
No dia 21 de agosto, o Chile legalizou oficialmente o aborto no país. O Tribunal Constitucional referendou o projeto aprovado pelo Congresso, descriminalizando o aborto em três casos: risco de morte para a mulher, estupro e má formação fetal.
A legislação chilena é um avanço para os parâmetros do país, altamente conservador e católico. Trata-se de uma das últimas nações do mundo a permitir o divórcio, legalizado apenas em 2004.
Ainda assim, os casos abarcados pela nova lei chilena são os mesmos em que o aborto já é permitido no Brasil. Tanto aqui como lá, segue a luta pelo direito ao aborto 100% legal, gratuito e seguro.
Por isso que o PSol protocolou, em março, uma ação pela descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal (STF). A medida foi elaborada em parceria com a Anis – Instituto de Bioética. Tenho orgulho de ser uma das advogadas da ação, junto com a Luciana Boiteux, a Sinara Gumieri e a Gabriela Rondon.
A ação protocolada é uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), movida para julgar situações em que atos do poder público violem preceitos fundamentais da Constituição. Nesse caso específico, o partido pede que o STF revise os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto sob a perspectiva da Constituição de 1988.
Elaborado nos anos 1940, o Código Penal possui dois artigos que criminalizam o aborto feito pela mulher ou por outra pessoa, com seu consentimento. São os artigos 124 e 126. O que nós argumentamos na ação é que esses dispositivos são incompatíveis com a garantia de direitos expressa na Constituição formulada 48 anos depois.
A Carta Magna estabelece a garantia do direito à cidadania, à dignidade, à não discriminação, à igualdade, à liberdade, a não sofrer tortura ou tratamento desumano, degradante ou cruel, à saúde e ao planejamento familiar. Todos esses princípios são violados pela criminalização do aborto.
Caso o Supremo aceite a ação do PSol e da Anis, a interrupção da gestação realizada por vontade da mulher até 12 semanas de gravidez não será mais crime no Brasil. As 12 semanas não foram escolhidas ao acaso. Trata-se do tempo gestacional em que grande parte das mulheres faz aborto no mundo inteiro.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) considera que este é o período mais seguro para a realização do procedimento, com uma taxa de apenas 0,05% de risco de complicações. Além disso, o limite de 12 semanas de gestação é o parâmetro adotado em diversos países que já legalizaram o aborto, como Alemanha, Dinamarca, França, Itália, Suíça e Uruguai.
No Brasil, o debate sobre a legalização sempre foi interditado. Aliás, o próprio debate sobre a prática do procedimento em si é interditado. Dogmas religiosos e morais se atravessam em um assunto que deveria ser discutido nos patamares de uma política pública de saúde. E, em um Estado – pretensamente – laico como o nosso, questões religiosas de qualquer ordem não deveriam ser levadas em conta na elaboração de políticas públicas.
O fato é que o aborto é uma realidade, esteja criminalizado ou não. As duas edições da Pesquisa Nacional do Aborto, realizadas pela Anis em 2010 e 2016, mostraram que, aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres já realizou um aborto no Brasil. Em 2015, foram 503 mil mulheres que optaram pelo procedimento.
A cada minuto, uma mulher decide interromper sua gravidez. É uma verdadeira tragédia que as mulheres tenham que recorrer a clínicas clandestinas e a procedimentos extremamente inseguros. É um perigo real à vida dessas mulheres. A situação afeta especialmente as mulheres negras e pobres, pois quem possui recursos financeiros tem condições de pagar por um procedimento mais seguro, ainda que ilegal.
Legalizar o aborto não significa torná-lo prática banal em nosso sistema de saúde. Pelo contrário, significa articular uma rede integrada e multidisciplinar de atendimento às mulheres que optarem pelo procedimento, com acolhimento psicológico e serviço de assistência social.
A experiência de países que já descriminalizaram o aborto demonstra que essa rede de atendimento em saúde acaba justamente reduzindo o número de interrupções voluntárias da gravidez. Na França, desde que o aborto foi descriminalizado, em 1975, houve uma redução de 24,5% no número de procedimentos.
Ao ser acolhida pela rede de atendimento dentro do sistema de saúde – ao invés de criminalizada e tratada como caso de polícia –, a mulher que opta por interromper sua gravidez tem acesso a recursos, informações e acompanhamento profissional, que naturalmente pode levá-la a reconsiderar sua escolha.
A ação do PSol no STF abre a oportunidade de que seja feito um amplo debate nacional sobre o assunto, já que o Congresso interdita o tema. A ministra Rosa Weber, relatora do processo, já decidiu que irá promover audiências públicas para discutir esta questão. É necessário que enfrentemos este debate sem medo e sem dogmas. É pela vida das mulheres!