Este ano completa-se um século da Revolução Russa. Refletir sobre este acontecimento histórico e sobre a atualidade da luta que ela significou é fundamental. Inauguramos uma série de textos para debater este evento grandioso com o artigo do Mario Sergio Conti, publicado hoje na Folha.
Em fevereiro, 150 milhões de almas seguiam cegamente o autocrata. O czar governava com o apoio do Parlamento, da Igreja, do Exército, da Universidade, da Imprensa e de todas as cabeças bem pensantes, ou apenas razoáveis. Veio o Dia das Mulheres, em fevereiro.
Em cinco dias de protestos, Nicolau 2º virou pó. Veio abaixo o império, enraizado na tundra milenar da ignorância e da brutalidade. O partido radical, o bolchevique, estava com os líderes na cadeia ou banidos. Até eles defenderam a República recém-proclamada.
A exceção foi Lênin, exilado na Suíça. De volta à Rússia, em abril, ele pregou sozinho a tomada do poder e o socialismo. Foi acusado de traição e caiu na clandestinidade. Em outubro, porém, foi a República que caiu, sendo substituída por conselhos eleitos em fábricas, fazendas e quartéis. Lênin saiu do esconderijo para o Conselho de Comissários do Povo.
Não foi a irrupção das massas nem a democracia direta que marcaram a Revolução Russa. A plebe destronou os privilegiados e passou a governar -o que já ocorrera na França de 1792. E, como na Comuna de 1871, os insurretos de Petrogrado inventaram uma democracia radical.
Duas outras audácias fizeram de 1917 um evento na história da humanidade. Pela primeira vez em milênios, os proprietários foram tirados do poder para que a sociedade trabalhasse em prol de si mesma. A revolução não foi só antiburguesa -além de antiaristocrata, anticlerical e anti-imperialista-, foi contra os parasitas do trabalho alheio.
A segunda invenção está no país oriundo da revolução. De maneira inédita, um Estado não trouxe no nome referência a um povo ou nação: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E mesmo a URSS seria embrião de um regime internacional, capaz de organizar a produção e o progresso em escala mundial.
A Revolução Russa revelou uma possibilidade política impensável -a de a humanidade agir como espécie. Sem países ou proprietários, o gênero humano poderia superar o egoísmo e o trabalho alienado, integrando-se à natureza. Essa chance não era uma utopia. Estava ao alcance da Terceira Internacional e do Exército Vermelho.
Michelet, historiador da Revolução Francesa, escreveu que “cada época sonha a próxima”. Como aqui e lá fora os tempos são de reação triunfante, os fatos de 1917 só ensejam conformismo. A ideologia se apresenta como lição histórica.
Os realistas enchem a boca para dizer que as classes acabaram e o poder é impessoal. Que a sociedade ficou demasiado complexa. Que a economia é coisa para especialistas. Que Thatcher estava certa: não há alternativa.
Não há futuro: eis a divisa dos poderosos. No entanto, jamais a concentração da riqueza foi tão aguda; a desigualdade voltou a níveis pré-1917; a humanidade está cada vez mais perto de um acidente nuclear.
Nesse quadro paralisante, “Teses de Abril” e “O Estado e a Revolução”, escritos por Lênin no calor da hora, entre fevereiro e outubro de 1917, parecem fantasmas. Curiosamente, eles também falam diretamente ao presente. Não se prepara uma revolução, que nasce do imprevisto e do impensável. A Revolução Russa só pode estar viva enquanto derrota. Ela tem, portanto, o que ensinar aos brasileiros -derrotados permanentes num país onde nunca houve revolução (nem reforma).