Esta reportagem foi originalmente publicada por Audrey Furlaneto no jornal Valor Econômico
A vítima ainda não havia procurado a polícia. Adolescente de 16 anos, ela planejava ficar em silêncio. Temia retaliações e julgamentos pelo estupro coletivo do qual fora vítima dias antes. Foi surpreendida com o vídeo do ato brutal divulgado nas redes sociais – e, em seguida, soube que o Ministério Público do Rio de Janeiro já havia recebido 800 denúncias da barbaridade da qual havia sido vítima. Então, repetiu-se à exaustão: a cada 11 minutos, uma mulher é violentada no Brasil.
São elas, as mulheres, que também teceram a rede de acolhimento da vítima de estupro no Rio. Depois das denúncias, deram início a um debate feminista cuja repercussão tem escala rara na história recente do país. Em poucos dias, mais de 700 mil pessoas – muitas mulheres – cobriram suas fotos no Facebook com a máscara da campanha “Eu luto pelo fim da cultura do estupro”. O assunto chegou ao primeiro lugar entre os mais comentados do Twitter no Brasil e ao terceiro lugar no ranking mundial.
O corpo feminino e sua relação com o contexto machista tornou-se mote para incontáveis debates que se valem, principalmente, das redes sociais – e das ruas. A militância feminista programa fazer deste mês o “Junho Feminista”, com manifestações em todo o país quase que diariamente. Os protestos são convocados em eventos pela internet, principal arma para a organização feminista. “Estamos no auge da chamada terceira onda do feminismo”, diz Carla Rodrigues, professora de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por “terceira onda”, entenda-se o movimento feminista desencadeado em meados dos anos 1990, em que os grandes debates tratam sobretudo do corpo da mulher e da percepção da misoginia (o “repúdio à mulher”).
O estupro coletivo da adolescente de 16 anos é mais uma evidência do grave problema da sociedade. “A violência contra a mulher ocorre em todas as classes sociais”, diz Ana Flavia Pires Lucas d’Oliveira, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e integrante da Rede Não Cala, que reúne professoras e pesquisadoras pelo fim da violência sexual e de gênero na USP. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), diz a professora, 10% de uma mostra representativa de mulheres do município de São Paulo relataram ter sofrido pelo menos um episódio em que foram forçadas a ter relação sexual com o parceiro. “Isso é considerado estupro”, diz Ana Flavia, coordenadora no Brasil do estudo multipaíses da OMS sobre saúde e violência doméstica.
Diante da ampla repercussão do estupro da adolescente, o presidente interino, Michel Temer (PMDB), reagiu. Nesta semana, anunciou, ao lado do ministro Alexandre de Moraes (Justiça), um plano nacional para enfrentar a violência contra a mulher. No mesmo dia, foi apresentada a secretária nacional de Políticas para as Mulheres: a ex-deputada federal Fátima Pelaes (PMDB-AP), de perfil conservador. Durante discussões na Câmara sobre o Estatuto do Nascituro, em 2010, Fátima posicionou-se contrária ao aborto até em casos de estupro.
A postura de Fátima está completamente desalinhada das feministas. No fim do ano, milhares de mulheres de origens distintas protestaram justamente contra o PL 5.069/2013, projeto de lei que dificulta o acesso a informações e ao aborto para mulheres vítimas de estupro. De autoria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), hoje presidente afastado da Câmara, o projeto foi rechaçado nas ruas. Ampliado, o debate desaguou no movimento “Fora, Cunha”.
Antes das manifestações contra Cunha, no entanto, houve o uso massivo da “hashtag” #meuprimeiroassedio nas redes sociais, em outubro de 2015. O projeto foi criado pela jornalista Juliana de Faria, 27 anos, fundadora do site feminista ThinkOlga e da campanha Chega de Fiu Fiu, pelo fim do assédio nas ruas. Ela própria deu início à enxurrada de “hashtags” ao relatar num post o primeiro caso de assédio que havia sofrido, aos 11 anos. Em cinco horas, a “hashtag” já somava 90 mil posts.
“A coragem é viral. Na hora seguinte ao meu post, recebi muitas mensagens e comecei a pedir para que usassem a ‘hashtag’, a fim de mapear isso”, conta a jornalista. Numa das análises capitaneadas por Juliana e sua ‘hashtag’, descobriu-se que a idade média das mulheres vítimas de assédio (e que fizeram relatos nas redes sociais) é de 9,7 anos. “A ‘hashtag’ lavou a rede e fez ruir uma estrutura brasileira historicamente importante: a casa. Os posts mostravam que os casos acontecem sobretudo dentro de casa, com tios, pais, padrastos”, lembra a roteirista Antonia Pellegrino, uma das editoras do blog feminista #AgoraÉqueSãoElas, publicado no site da “Folha de S.Paulo”.
Segundo dados do Mapa da Violência contra a Mulher, 85% dos casos de assédio (que geram boletim de ocorrência) ocorrem dentro de casa. “Todos ficaram chocados. Os homens ficaram muito chocados, envergonhados. Até então parecia que eles desconheciam esse mundo”, diz Antonia.
Com a posse de Temer, no mês passado, as feministas voltaram a ganhar protagonismo. Diante de um ministério formado apenas por homens, as mulheres impuseram à nova gestão o debate da falta de diversidade. O governo, por sua vez, teria sondado mulheres – de Marília Gabriela a Daniela Mercury, que rejeitaram os convites – para assumir uma pasta. A grita gerou manifestações até mesmo de aliados: o PSDB Mulher chegou a enviar carta de repúdio ao presidente.
Uma semana depois da posse, Temer convocou 52 deputadas para um café da manhã. A chamada “bancada feminina” da Câmara atendeu ao seu chamado, mas parcialmente. Das 52, 21 mulheres aceitaram o convite e ouviram do presidente que a falta de tempo era uma das causas para a ausência de mulheres em seu primeiro escalão.
Menos de 15 dias depois da posse, as vigilantes feministas não deixaram de bradar quando o ministro da Educação, José Mendonça Filho, recebeu Alexandre Frota em seu gabinete. No ano passado, o ator narrou em programa na TV aberta o momento em que teria violentado uma mãe de santo. Sua visita foi coroada pela coincidência: no mesmo dia, o vídeo com imagens do estupro coletivo no Rio foi postado nas redes sociais.
“No dia em que vemos um caso bárbaro de violência contra a mulher, este homem, que é símbolo da cultura do estupro, é recebido no Ministério da Educação. Ou seja, é com essa base social que o governo atual conta”, diz Sâmia Bomfim, militante feminista que acabou processada pelo ator ao ter clamado por sua prisão no Facebook. Sâmia tem cópias das ameaças que Frota lhe enviou pela internet. Procurado, o ator não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem.
Desde seu surgimento, no fim do século XIX, a luta da mulher contra a opressão tomou moldes diversos, respondendo ao contexto em que se desenrolava. Assim, no início do século XX, a questão principal era o direito da mulher ao voto. Já na segunda onda, em meados dos anos 1960, o debate migrou para a liberdade sexual – ou, ao menos, direitos sexuais iguais para homens e mulheres.
Se historicamente era difícil descolar o feminismo de seu contexto político, no cenário atual de polarização, a missão parece impossível. A militância, em geral, é crítica ao governo Temer e chega a qualificar o impeachment de Dilma Rousseff (PT) como “golpe de misoginia”. Quando tomou posse, observa Carla Rodrigues, Dilma rapidamente ganhou adjetivos pejorativos, como “gerentona” ou “autoritária”. “Tudo vai no sentido de: ‘Essa mulher não obedece, não se curva. Como pode uma mulher mandar?”, diz a professora.
Mulheres que lideram os debates se recusam, de fato, a dialogar com o governo interino. “A verdade é que não nos surpreende o fato de não ter mulheres nos ministérios. Estamos diante de um governo de homens brancos de elite”, avalia Djamila Ribeiro, uma das principais vozes do feminismo e do movimento negro no Brasil atual.
Apesar de serem mais da metade da população do país – segundo o IBGE, são 54% dos brasileiros -, as mulheres ocupam apenas 51 das 513 cadeiras da Câmara, o equivalente a 9,9% das vagas. No Senado, são 12 para 81 cadeiras, o equivalente a 13% do total. Segundo dados da União Inter-Parlamentar, o Brasil fica abaixo da média mundial, de 22,1% de mulheres nos parlamentos.
“País em que a mulher é sub-representada na política indica desigualdade entre homens e mulheres na sociedade”, afirma Ana Flavia. De acordo com a professora da USP, índices internacionais mostram uma correlação entre a participação feminina e a redução da desigualdade de gênero. Ainda assim, novas feministas brasileiras, como Djamila, dizem não ter interesse em ocupar postos, pelo menos no atual governo federal. “Não adianta termos mulheres no governo só por serem mulheres, se elas acabam repetindo as velhas formas de se fazer política.”
Filiada ao PSDB de São Paulo, a deputada Mara Gabrilli classifica como “intransigentes” aquelas que se recusam a aceitar diálogo com o governo. “Elas ainda circulam no Congresso com placas de ‘golpista’, ainda estão nessa ‘vibe’. Não estão prontas para dialogar”, afirma a tucana, que chegou a ser cotada para a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, mas não foi nomeada.
A deputada defende que já se conquistou um “grande avanço” com o convite para o café da manhã no Palácio. “Temer não é um cara que desdenha da mulher, só não teve muito tempo para montar a equipe. Ele disse que futuramente vai convidar mulheres, mas agora precisava enxugar os ministérios.” Mara lembra que o presidente interino era secretário de Segurança Pública de São Paulo quando foi criada na cidade a primeira Delegacia da Mulher.
Embora veja com maus olhos o ministério masculino e todo o governo de Michel Temer, a militante Sâmia Bomfim não tece elogios à gestão de Dilma Rousseff. “Era uma mulher, mas não trabalhou pelos direitos da mulher. No governo dela, cortou-se pela metade a verba para a mulher. Pautas como a legalização do aborto, que poderiam contar com o fato de termos uma mulher na Presidência, não avançaram minimamente”, critica Sâmia.
Para Antonia Pellegrino, o projeto de Eduardo Cunha acabou por “aglutinar num ato todos os anseios e revoltas, todo o desejo de lutar contra o machismo”. “Não dá para precisar exatamente o que fez eclodirem os movimentos feministas recentes, mas, certamente, tem a ver com o Pró-Uni, com um ganho de consciência maior das classes mais baixas, porque quem está alavancando isso não é gente de classe média. Até porque, para quem é de classe média, o machismo é mais sutil. Vejo um papel enorme das mulheres negras de periferia que foram para a universidade”, avalia Antonia.
Enquanto a bancada feminina da Câmara de Deputados se preparava para um café com Temer semanas atrás, Djamila, militante negra, assumia o cargo de secretária-adjunta de Direitos Humanos de São Paulo, na gestão de Fernando Haddad, do mesmo partido da presidente afastada Dilma Rousseff. Aos 35 anos, a filósofa representa uma geração que reivindica cada vez mais o que se usa chamar de “lugares de fala”, das ruas às redes sociais, das universidades ao mundo do trabalho.
“De alguns anos para cá, com as redes sociais e o aumento do acesso à internet, conseguimos amplificar o alcance do nosso discurso. Nós, feministas, passamos a ter blogs, conseguimos organizar mais encontros, aglutinar os grupos que já existiam dentro de organizações ou nas universidades”, diz Djamila.
Mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo, ela cresceu entre manifestações em Santos, segurando cartazes com palavras de ordem. Ia nos ombros do pai, militante negro e um dos fundadores do Partido Comunista. Na adolescência, passou a frequentar coletivos de mulheres negras. Criou um núcleo de estudos de gênero, raça e sexualidade na universidade e, em seguida, criou blogs e passou a assinar uma coluna sobre o tema no site Carta Capital.
Aos 22 anos, a militante negra Stephanie Ribeiro, estudante de arquitetura na PUC de Campinas, faz palestras pelo Brasil sobre o feminismo negro. “As mulheres negras precisam escrever, precisam falar, mas achamos que estamos onde não deveríamos estar, muito por causa de um racismo arraigado”, diz Stephanie. Ela mesma hesitou em aceitar convite da Companhia das Letras para escrever um livro (feminista, é claro). Decidiu-se por assinar o contrato mirando a possibilidade de “expor questões relevantes para as mulheres negras” a partir de sua história.
De acordo com a professora da USP Ana Flavia, 13,2% das mulheres brasileiras que já sofreram violência por um parceiro íntimo são negras, enquanto 9,8% são brancas. Essa interseccionalidade de gênero, classe e raça mostra como o eixo de poder – e vulnerabilidade – se entrecruza nos indivíduos.
“O movimento feminista atual superou a ideia de agendas separadas. Percebeu-se que para avançar nas pautas da mulher, é preciso que a sociedade como um todo avance”, defende Stephanie. A pluralidade de vozes, segundo ela, não desvia a atenção de um drama maior, a violência contra a mulher. “O Brasil é absurdamente violento e estão pipocando casos de feminicídio e assédio nas escolas, nas universidades. A maioria das demandas passa pelo tema da violência, e essa é a prova mais profunda da desigualdade de gêneros”, diz Sâmia.
Nesta semana, o Senado aprovou um projeto de lei que amplia em até dois terços a pena pelo crime de estupro e criminaliza a publicação ou troca de imagens que mostrem cenas de estupro, uma resposta ao caso da adolescente no Rio. Nos últimos anos, é possível contabilizar algumas conquistas em relação às políticas relacionadas ao problema da violência, como a Lei Maria da Penha, de 2006, e a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as mulheres, de 2011. Mas, para Sâmia, não há sinais de melhora em vista, o que reforça a importância da militância do feminismo atual, na internet e nas ruas. “Não ter mulher no governo é apenas consequência de sermos governados por uma casta política envelhecida”, diz Sâmia. Para Djamila, resta às feministas a atuação permanente: “Vamos seguir fazendo o que já fazemos: aglutinar, contemplar diferentes vozes, e não aceitar o que está posto”. Elas vão repetir à exaustão: a cada 11 minutos, uma mulher é violentada no Brasil.