Nicolás Maduro
Nicolás Maduro

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Texto de Carlos Carcione, originalmente publicado em espanhol no Portal de la Izquierda.

“Hegel disse em alguma parte que todos os grandes feitos e personagens da história universal aparecem, por assim dizer, duas vezes. Mas se esqueceu de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa. Caussidière por Danton, Luis Blanc por Robespierre, a Montaña de 1848 a 1851 pela Montaña de 1793 a 1795, o sobrinho pelo tio”… Carlos Marx, 18 Brumario de Luis Bonaparte.


A ameaçadora sensação do decreto de exceção constitui, talvez, o início de uma enorme paródia. Apoiado em um discurso envernizado de um léxico “socialista”, que busca se parecer a uma continuidade do governo de Chávez, onde na verdade o que existe é uma ruptura com o mesmo, o presidente Nicolás Maduro acaba de dar outro passo no caminho da liquidação do processo bolivariano tal como o conhecemos nestas duas décadas.

O protagonismo da democracia participativa, as novas formas de propriedade, a garantia irrestrita aos direitos humanos e os direitos sociais e políticos que se estabeleceram fizeram da Constituição da República Bolivariana da Venezuela um ideal do qual nunca se afastou o presidente Chávez.

Essa Constituição expressou um projeto emancipador, que pode ser melhorado, claro. Tratava-se do sonho de completar a independência política, de alcançar a soberania econômica e de construir a justiça social. Uma revolução política em um marco democrático. Hoje esse projeto está agonizando.

Com o Decreto 2323, a tentação autoritária que a cúpula do governo vinha mostrando há meses se encontra diante de um delicado limite de uma medida extraordinária que, ao se impor em todo seu alcance, revoga, de fato, as garantias e direitos constitucionais e suprime a República como forma de governo. Por meio do decreto, o governo anunciou em alto e bom som sua vontade de transformar um regime político democrático em um regime bonapartista clássico: totalitário, reacionário e repressivo.

A complexa situação política, econômica e social pela qual atravessa o país, entrou, pela mão deste decreto, em uma época de turbulências agudas que podem desembocar em fatos imprevisíveis. Estamos presenciando o aprofundamento de um conflito pelo poder entre as duas cúpulas políticas, tanto a do PSUV como a da MUD, que há muito tempo estão afastadas das necessidades dos cidadãos. Trata-se da disputa pelo controle da distribuição de renda. Nesta disputa o povo é um simples e sofrido espectador que paga as consequências.

E como o objetivo é inconfessável, o decreto, em suas considerações, está repleto de generalidades. O decreto denuncia todo tipo de supostos ataques ao Executivo. Não apenas a oposição e a Assembleia Nacional são acusadas abertamente, convertendo as intenções de seus dirigentes em provas, mas sugere-se que todo aquele que, dentro das próprias “fileiras”, questione, critique ou faça propostas alternativas teria o “vil” objetivo de derrubar o governo. Por outro lado, os artigos do decreto, ao não especificar quais direitos e garantias poderiam ser suspensos, desenham, para a solução dos problemas que o mesmo assinala, um Estado de caráter policial, mascarado de “poder popular”, com a função de “vigilância” que se atribui aos CLAP e aos Conselhos Comunais.

Ao mesmo tempo segue sem atacar as causas fundamentais da crise econômica. O decreto anterior de emergência econômica foi um fracasso. Alguns poucos dados ilustram o que dizemos: A inflação anual, que para o ano de 2015 esteve ao redor de 200%, medida anualmente no mês de março de 2016, já alcançava 514%, sem levar em conta o aumento nos meses em abril que, segundo o indicador “Petare” de Hinterenlaces , nos últimos 15 dias desse mês superou 24% de incremento nos preços. Quando o desabastecimento de alimentos e medicamentos em dezembro do ano anterior chegava a 60% aproximadamente, no mês de março deste ano esse desabastecimento chega a 75% em alimentos e 80% em medicamentos.

Há, no entanto, um dado que explica a situação atual: a redução nas importações serão maiores; segundo o ministro Pérez Abad, o que se destinaria a importações de produtos indispensáveis este ano apenas alcançaria $MM 15.000, o que significa uma redução ao redor de 70% em relação ao ano de 2013. Enquanto isso, os pagamentos da Dívida Externa, entre o ano passado e o até este momento, segundo se lamenta o presidente Maduro, alcançaram a cifra $MM 30.000.

Acima de todas as manobras empresariais, que condenamos, a base do desabastecimento e a carestia interna está nesta política: Todos os dólares que ingressam no país são para pagar dívida, e se alguma coisa sobra, vai para alimentos e medicamentos. É a economia “produtiva” que Perez Abad anuncia sem se envergonhar. É contra esta política que o povo, nas filas, já começa a se rebelar diariamente. O mais grave é que, com o decreto, o governo pretende obrigar as Forças Armadas a romperem suas tradições e raízes bolivarianas para defender uma política miserável contra o povo.

Mas o maior cinismo do decreto está no que diz respeito ao Polo Mineiro e à conservação do meio ambiente.

Enquanto um dos muitos artigos questiona a devastação indiscriminada das florestas, vários outros autorizam o aprofundamento do extrativismo depredador da atividade de mineração, que não apenas destrói as florestas, como converte em rochas secas 22% do território nacional. A inconsistência da argumentação é tamanha que fica visível quando o decreto compara um fenômeno natural e previsível, como o El Niño, com as consequências que a depredação da atividade de mineração provoca no abastecimento de água e de energia elétrica.

Por outro lado, a permanente acusação de golpe de Estado contra o Executivo, que, segundo o Major General Cliver Alcalá Cordones, não tem fundamento, serve de justificativa para o decreto e abre caminho para que se promova uma repressão indiscriminada. O que está subentendido neste discurso de “golpe” é a tentativa de anulação do instituto do referendo revogatório, que é a única ação possível para que o povo avalie o governo e decida sobre sua continuidade. Para o governo, o referendo revogatório é, agora, um instrumento subversivo tal qual os protestos de rua. Assim, o governo Maduro rechaça um dos instrumentos democráticos mais avançados da nossa Constituição, rompendo com o legado de Chávez em sua obra mais completa.

Ao comparar a tentativa de se realizar o referendo revogatório com a destituição de Dilma Rousseff e a saída do PT do governo brasileiro, a cúpula do PSUV desnuda toda a falácia de seu discurso. O que aconteceu no Brasil foi um “golpe” parlamentar, empurrando para a ilegalidade uma cláusula constitucional. O referendo revogatório não é uma “opção”, como diz o governo, é um direito cidadão que o Estado, através do Conselho Nacional Eleitoral, tem o dever de facilitar. Assim determina a Constituição da República Bolivariana da Venezuela.

Pretendendo anular este direito, a cúpula do governo e o PSUV atuam da mesma maneira que os parlamentares brasileiros que forçaram a saída de Dilma. E ainda pior, porque, no nosso caso, com o referendo revogatório, é o poder constituinte soberano, ou seja, o povo venezuelano, que avalia e que decide o futuro do governo. Proibir o referendo não significa rejeitar uma petição legal feita pela oposição, significa negar um direito ao povo venezuelano, que, ao fim e ao cabo, é quem avalia e quem decide com seu voto se o presidente continua ou se tem seu mandato revogado.

O velho Marx, analisando o golpe de Estado que derrubou a República e levou à posse do sobrino de Napoleão como imperador, escrevia, no início do seu trabalho, “O 18 Brumario de Luis Bonaparte”, a frase com a qual iniciamos este texto. É possível relacionar esta história com a situação atual da Venezuela, pois este decreto de Maduro traça uma linha vermelha: converte o relato heróico e cheio de esperança do projeto Chavista, de sua vontade de independência, soberania e Justiça para todo um povo, em seu exato oposto, uma farsa grotesca para impor a permanência de um governo a qualquer custo, de uma cúpula corrupta e questionada hoje pela maioria do país. A diferença da situação atual com aquela analisada por Marx é que estas cúpulas corruptas deram, com a sanção do decreto, um passo que as afasta ainda mais do respaldo popular e os deixa suspensos no ar.

Os verdadeiros bolivarianos, os chavistas honestos, os socialistas democráticos, irreverentes e libertários, este povo que é o sangue e os nervos do processo revolucionário, agora enfrenta um dilema: apoiar o decreto da infâmia ou levantar a voz na defesa irrestrita das garantias e direitos da nossa Constituição.