Vladimir Safatle
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*Artigo do filósofo Vladimir Safatle, originalmente publicado no site da Folha de São Paulo nesta sexta-feira (08/04).

Provavelmente na semana que vem, o Brasil assistirá mais uma das incontáveis tentativas de golpe de Estado que atravessaram sua história. Animado por um ritmo desesperado, a Câmara dos Deputados e seu presidente-réu preparam para passar à força um pedido de impeachment. Contrariamente ao que era o roteiro inicial escrito nas redações de quem já tem uma experiência longa de chamamentos a golpes, o pedido não criou um movimento irresistível de destituição da presidenta. No máximo, ele expôs as fraturas da sociedade brasileira e mostrou o alto grau de incerteza, instabilidade e gangsterismo que nos aguarda.

Mas, como se diz no mundo do entretenimento: apesar da farsa, o show tem de continuar. Mesmo que seja com um pedido de afastamento feito por advogados que não temem em mobilizar discursos “evangelo-fascistas” por serem construídos a partir de um amálgama de paranoia de perseguição, promessas de redenção religiosa e de aniquilação de inimigos internos comparados a animais nocivos e peçonhentos. Essa retórica é velha conhecida dos momentos sombrios da história. O elemento novo aqui é vê-la embalada por afirmações à imprensa de que os cavaleiros do impeachment agem inspirados pela vontade de ninguém menos do que Deus. Bem, Deus já teve amigos melhores.

Neste contexto, setores da oposição e do próprio governo começam a aventar a possibilidade de adiantar eleições. Gostaria de insistir no que afirmei várias vezes nesta coluna: dada a situação atual de crise, esta é a melhor alternativa. Em situação de grave crise política e divisão profunda, a única coisa a fazer é anular o campo das representações políticas e recorrer à expressão direta da soberania popular. Uma nova eleição não “resolverá” o problema pelo qual passa o Brasil, mas nenhuma ação isolada “resolverá” o problema de um país que precisa refundar sua democracia. O que uma nova eleição pode fazer é quebrar o ímpeto da casta política brasileira em aproveitar-se da fragilidade do governo para se salvar criando uma aliança com setores econômicos interessados em passar à força um programa de “austeridade” e concentração de renda que nunca seria referendado pela população.

Àqueles que, preocupados com o pretenso conservadorismo rompante na sociedade brasileira, temem que uma nova eleição equivaleria a um tsunami conservador, analisam o campo dos possíveis a partir de um medo patológico que não pode ter lugar em horas como esta. Por isto, eles avaliam mal. Uma eleição permite tirarmos o jogo político atual das negociatas inconfessáveis de bastidores para levá-lo a uma disputa a céu aberto pela formação da opinião pública. Esta disputa está indefinida, as pesquisas demonstram claramente como a oposição golpista, mesmo dopada por campanhas midiáticas, está em queda livre, seus candidatos não tem fôlego. Seus discursos de ódio primário afastam vários setores da população. Não por acaso, eles são atualmente os primeiros a desqualificar a proposta de novas eleições. Mesmo o candidato do governo está impressionantemente bem colocado, aumentado a incerteza do resultado.

Por outro lado, desde o dia 18 de março ficou claro como o setor da população identificado à esquerda do espectro político tem força surpreendente de mobilização espontânea, de comunicação alternativa e de disputa. Nestas horas, melhor lembrar do que dizia o poeta Hölderlin: lá onde está o seu maior perigo, está também sua salvação.

Em tom de desafio, a presidente Dilma afirmou, nesta semana, que aceita discutir a proposta desde que os parlamentares também se disponham a abrir mão de seu mandato. Ela tem toda razão. Qualquer eleição presidencial com a permanência de um Congresso com quase um quarto do seus membros indiciados é uma piada. O Congresso com seu presidente piromaníaco da Câmara e seu presidente indiciado do Senado é um eixo fundamental da crise.

Por isto, esta eleição deve ser geral. Ela deve ser precedida por um plebiscito no qual a população decida se quer que a presidente e o Congresso continuem. Cabe ao povo, e apenas diretamente a ele, dizer se os mandatos devem ou não ser encurtados. Se a resposta for por novas eleições, elas seriam feitas junto às eleições municipais em prazo estendido de campanha e obrigação de tratamento igual para todos os candidatos à Presidência.

A saída de situações de crise só pode ser através de mais democracia. Neste momento, muitos dizem falar em nome do povo, mas a verdade é que muitos temem ouví-lo. Se quisermos mudar a situação terminal na qual nos encontramos, o melhor a fazer é começar por parar de ter medo do povo.