*Artigo do filósofo Vladimir Safatle, originalmente publicado na edição desta sexta-feira (25/12) da Folha de São Paulo.
Uma afirmação que é atualmente tratada como evidência clara como o sol refere-se à hipótese de vivermos no turbilhão de uma onda conservadora. O caráter pretensamente evidente de tal afirmação serve-se de uma série de eventos esparsos, como a composição atual do Congresso Nacional, o sucesso de uma telenovela evangélica, as manifestações de rua no começo do ano a favor do impeachment, a grande venda de livros ensinando a encontrar comunistas na escola de seu filho, a cruzada contra as teorias de gênero, entre outros fenômenos. Para coroar o processo nacional, teríamos o curso do mundo caminhando ao passo de partidos racistas e protofascistas com recordes de votação e discursos xenófobos cada vez mais institucionalizados.
No entanto, há de se perguntar se tal evidência de uma onda conservadora é real ou fruto involuntário de uma leitura cômoda de nossa situação atual. Notem que quem diz “onda” está a falar de um acúmulo maior de força, de uma conquista irresistível de “corações e mentes”. Mas seria interessante se perguntar se o fenômeno que vemos hoje é realmente uma onda conservadora ou simplesmente a decomposição radical do que poderíamos chamar de “campo das esquerdas”. Uma decomposição que não foi fruto de complôs internacionais e de recrudescência do ódio, mas de impasses e erros próprios. Como política é um jogo de forças, decomposta uma das forças, a outra toma todo o espaço.
O Brasil sempre foi um país com uma grande parcela de sua população claramente identificada ao pensamento conservador. Se necessário, tal população ia às ruas e mobilizava milhares de pessoas em nome de Deus, da família e da propriedade. Eles votaram em Jânio Quadros mais de uma vez, em Paulo Maluf, afirmaram que, se Collor perdesse a eleição, o apartamento que você tem seria dividido no melhor estilo Dr. Jivago. Décadas atrás, livros de Paulo Francis, Roberto Campos e José Guilherme Merquior inundavam livrarias. Contrariamente ao que acreditam alguns, seus argumentos eram, muitas vezes, tão rasteiros e caninos quanto os que ouvimos atualmente. Nada disto mudou muito, só perdeu seu contraponto.
Diria que o que mudou foi a necessidade atual de uma narrativa que justifique nossa paralisia. A ideia de uma “onda conservadora” é boa para alguns porque ela nos faz agir a partir do medo do que pode vir. Quem tem medo não discute muito, simplesmente aferra-se à situação atual, por mais que ela seja ruim. Assim, a hipótese da onda conservadora nos reconcilia com nossa própria paralisia e incapacidade de criar alternativas, de discutir novos modelos de organização política e fazer a autocrítica honesta de nossos erros e dos modelos que foram implementados na última década. O chamado “campo das esquerdas” está preso atualmente entre a defesa de cadáveres e a fragmentação impressionante de seu discurso devido ao desinteresse em construir uma perspectiva de implicação geral. Quando ela consegue sair deste duplo impasse, como vimos na Espanha com a votação impressionante do Podemos nas eleições do último domingo, ninguém mais vê onda conservadora alguma.
Um dos argumentos aparentemente mais fortes dessa chamada onda conservadora é a composição atual do Congresso. Como se um Congresso fruto de campanhas milionárias e leis eleitorais casuísticas fosse a “representação” da população brasileira. Décadas de dificuldade em criticar a democracia representativa dão nisso. Mas há ainda uma distorção suplementar que faz desse Congresso atual uma mera aberração. A última eleição teve uma candidata com 20% de votos e, no fundo, sem partido, já que Marina Silva foi alçada à disputa sem um grupo de candidatos de uma agremiação que lhe fosse própria.
Vejam que onda conservadora bisonha. Digamos que teríamos eleições gerais hoje. Segundo pesquisas, Aécio Neves teria 26%, Lula 20%, Marina 19%, Ciro Gomes 6%, Bolsonaro 4%, Luciana Genro, entre 2 e 3%, e qualquer candidato do PMDB entre 1 e 2%, além de 14% de indecisos. Até segunda ordem, Lula, Marina, Ciro Gomes e Luciana não fazem parte de onda conservadora alguma e somam muito mais do que os outros candidatos juntos. Se houvesse eleições para o Congresso, e aceitando que há uma tendência do voto de presidente influenciar os demais votos, o Congresso que sairia dessas eleições seria muito diferente e melhor do que a camarilha que temos atualmente. Acrescente-se a isto o fato de que boa parte dos 60 deputados indiciados seriam pegos pela lei da Ficha Limpa em alguns meses e que leis contra financiamento empresarial de campanha foram aprovadas.
Mas, bem, mesmo assim há de se reconhecer que falar em onda conservadora é a melhor coisa que podemos fazer quando não sabemos o que fazer ou quando temos medo de fazer qualquer coisa.