Após a repentina debandada do senador Randolfe Rodrigues (AP), que desistiu de concorrer à Presidência da República pelo PSOL, o partido teve apenas nove dias para apresentar sua nova candidata. Trata-se da ex-deputada gaúcha Luciana Genro, eleita por unanimidade na convenção nacional do PSOL, no domingo 22. A despeito da ausência das principais lideranças da legenda no evento, entre eles os deputados Jean Wyllys (RJ), Chico Alencar (RJ) e Ivan Valente (SP), além do próprio Randolfe, a presidenciável garante que “o partido está 100% unido”.
Com propostas ousadas, como a auditoria da dívida pública e a taxação de grandes fortunas, Genro espera que o PSOL consiga duplicar ou mesmo triplicar a representação na Câmara dos Deputados. E garante que levará ao debate eleitoral propostas polêmicas, como a legalização do aborto e a descriminalização da maconha, em contraponto à onda conservadora representada, entre outras, pela candidatura do Pastor Everaldo, do PSC. “É preciso vencer o preconceito e fazer as discussões necessárias”.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
CartaCapital: A desistência do senador Randolfe Rodrigues e a ausência de algumas das principais lideranças do PSOL no lançamento da sua candidatura passaram uma imagem de desunião do partido. Essa percepção é verdadeira?
Luciana Genro: O partido está 100% unido. A maior prova disso é que meu nome foi aprovado por unanimidade na convenção do domingo 22. Mesmo os setores que ainda questionavam a minha candidatura após a desistência do Randolfe, e pretendiam lançar o nome de Renato Roseano, do PSOL no Ceará, decidiram me apoiar. Houve um debate político acirrado, mas construímos uma unidade muito sólida. A ausência dos parlamentares na convenção não foi um sinal de desunião. Na verdade, não percebemos que isso poderia transmitir essa mensagem errada. Teremos um grande ato no Rio de Janeiro em 6 de julho, e lá estarão todos parlamentares e demais lideranças. Aliás, a convenção também aprovou todas as diretrizes programáticas, o que me deixou muito satisfeita, pois grande parte delas fui eu quem escrevi.
CC: São propostas bastante ousadas, como a auditoria da dívida pública, que consome mais de 40% do orçamento da União. Mas o que está se propondo exatamente? Renegociação ou moratória?
LG: A Auditoria Cidadã da Dívida, entidade civil coordenada por Maria Lúcia Fattorelli, tem feito muitos estudos a respeito do tema. Inclusive, Fattorelli participou da auditoria da dívida do Equador, que conseguiu reduzir os débitos em 75%. Foram identificadas diversas ilegalidades nesses empréstimos, o que permitiu renegociar tudo. Grande parte da dívida interna no Brasil é oriunda da dívida externa, o governo trocou uma pela outra. Desde a década de 1980, há uma série de questionamentos sobre as taxas de juros abusivas, extorsivas. O Brasil é obrigado a fazer um superávit primário de mais de 90 bilhões de reais ao ano, incluindo os esforços da União e dos estados, só para amortizar e pagar os juros de uma dívida que só cresce, nunca diminui. É importante ressaltar que vamos proteger os pequenos investidores, os trabalhadores que têm aposentarias garantidas por fundos de pensão. Com essa proposta, vamos atingir apenas os interesses dos milionários e dos bancos, que lucram muito com essa dívida.
CC: O PSOL também propõe a taxação das grandes fortunas. Que impacto essa medida poderia ter?
LG: O imposto sobre grandes fortunas é um passo importante para um sistema tributário mais justo por várias razões. Primeiro, porque é um requisito da Constituição que nunca foi cumprido. Depois, porque ajuda a diminuir a concentração de renda. O Atlas da Exclusão Social, organizado pelo economista Márcio Pochmann, revela que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil, que correspondem a 0,001% da população, têm uma riqueza equivalente a 42% do PIB. Se levarmos em conta o desempenho da economia em 2013, estamos falando em 2 trilhões de reais. Se o imposto de grandes fortunas fosse implementado com uma alíquota de 5%, e atingisse somente quem tem uma riqueza superior a 50 milhões de reais, teríamos uma arrecadação de 90 bilhões ao ano, coincidentemente o mesmo valor de superávit primário que o Brasil é obrigado a fazer para bancar sua dívida.
CC: Difícil é convencer esses milionários a abrir mão de 5% de sua riqueza…
LG: Não precisamos convencê-los, temos de convencer os parlamentares que nos representam. O deputado Chico Alencar reapresentou um projeto que formulei quando fui parlamentar, e agora ele já tem o aval da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Está pronto para ser votado em plenário, talvez precise fazer alguns ajustes na definição das alíquotas ou dos patamares de fortuna, mas a discussão está aberta. A proposta original era até mais dura, taxava todos os brasileiros com patrimônio superior a 2 milhões de reais em valores da época. Hoje, se fossemos atualizar pela inflação, como o próprio projeto demanda, seriam taxados patrimônios superiores a 3 milhões de reais. Mas a taxação começaria em 1% e a alíquota poderia chegar, de forma progressiva, até 5%, para quem tem fortuna superior a 50 milhões de reais. A proposta é essa, mas pode ser aperfeiçoada.
CC: A senhora também declarou que o PSOL não tem medo de discutir temas polêmicos, como a legalização do aborto, a descriminalização do consumo de maconha e a garantia dos direitos LGBT. Esse conjunto de propostas é um contraponto à onda conservadora na direção contrária, representada, por exemplo, pela candidatura do Pastor Everaldo, do PSC?
LG: Com certeza, é contraponto à onda reacionária. A sociedade brasileira está polarizada em torno desses temas. A reação conservadora emergiu nos últimos tempos justamente porque os avanços estão sendo exigidos. A população LGBT não aceita mais a discriminação, ter seus direitos restringidos. As marchas da maconha também pedem o fim da criminalização dos usuários e o fim da guerra às drogas, que só gera violência e corrupção.
CC: Historicamente, os partidos de esquerda nutrem certo temor de trazer temas polêmicos como esses para o debate eleitoral.
LG: Há uma grande hipocrisia eleitoral, na verdade. Há tempos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso defende a descriminalização da maconha, mas o candidato do PSDB, Aécio Neves, diz o contrário. O PT sempre foi favorável ao aborto, mas Dilma Rousseff se esquiva do debate, mesmo sabendo que milhares de mulheres morrem em abortos clandestinos, sem assistência médica. É o medo de perder votos dos setores mais conservadores da sociedade. Nós não tememos isso. Sabemos que muitos deixarão de votar no PSOL por conta dessas posições, mas é preciso vencer o preconceito e fazer as discussões necessárias.
CC: E como formar consenso nesses temas?
LG: Há muito desconhecimento, falta de informação correta. O PSOL não é a favor do aborto, ninguém em sã consciência é. Nenhuma mulher que recorre ao aborto faz porque quer, porque gosta, porque acha um bom método contraceptivo. Faz numa situação de desespero. O que o PSOL diz? Não devemos punir as mulheres por causa disso. Fui mãe aos 17 anos. Tive todo o apoio do pai da minha filha e da minha família, mas sei como é difícil encarar uma gravidez precoce. Vários estudos indicam que a maconha tem malefícios semelhantes ou até menores que o cigarro ou o álcool. Mas continuamos a tratá-la como uma droga perigosa, quando o maior perigo advém da sua proibição, que leva o usuário a se vincular a traficantes. Nesse momento, os usuários são apresentados a drogas muito mais danosas, como o crack. Além disso, a guerra às drogas não levou à diminuição do consumo. O número de usuários continuou em alta. A violência e a corrupção também aumentaram, diversos estudos revelam isso.
CC: O PSOL participou das jornadas de junho e continua mobilizado até hoje, nos protestos da Copa. Mas o senador Randolfe Rodrigues avalia que o partido não soube interpretar as demandas das ruas e abraçou, de forma equivocada, a campanha #nãovaitercopa. Como a senhora avalia essa crítica?
LG: O PSOL nunca aderiu ao slogan #nãovaitercopa. Alguns setores do partido, muitos militantes podem ter utilizado esse mote, mas o grande slogan sempre foi: Na Copa vai ter luta. E isso está correto, como tirar a razão dos sem teto ou dos metroviários que aproveitaram a exposição do megaevento para reivindicar seus direitos, por exemplo? Essa crítica do Randolfe está absolutamente descontextualizada da prática do partido. O MTST talvez seja o melhor legado da Copa. Ganharam projeção em 2014, com vitórias importantes, como a ocupação “Copa do Povo”, e devem continuar como protagonistas dessa luta.
CC: O PSOL conseguiu firmar alianças no plano nacional? Quanto tempo a senhora terá no horário eleitoral?
LG: Muito pouco. A legislação é muita injusta com partidos que têm pouca representação parlamentar. Teremos cerca de 50 segundos no horário eleitoral. Mas nós não trabalhamos as alianças para ganhar mais tempo na televisão. Acreditamos que esse é um método errado, um dos elementos que levou o PT ao seu processo de degeneração política. Os petistas ignoraram aspectos programáticos ou ideológicos ao estabelecer alianças com políticos como Sarney, Collor e Maluf.
CC: Não houve acordos nem com partidos de esquerda?
LG: Nós tentamos fazer aliança com o PSTU e o PCB, os únicos partidos de oposição ao governo Dilma à esquerda. Infelizmente, não foi possível. Com o Randolfe candidato, o PSTU alegou dificuldades em fechar acordo. E, após a desistência dele, eles já haviam construído uma candidatura própria. Mesmo caminho seguiu o PCB. Mas acredito em uma aliança informal, no sentido de trabalhar juntos para denunciar os candidatos do sistema e mostrar a necessidade de construir uma alternativa ao Brasil.
CC: O PSOL não aceita doações de campanha de empreiteiras, bancos e multinacionais. Sem dinheiro, não fica difícil levar a mensagem do partido a um número maior de eleitores?
LG: Dificulta muito, até porque as campanhas dos adversários são multimilionárias. Mas esse é princípio que o PSOL não abre mão. As mesmas empreiteiras que fizeram os superfaturados estádios da Copa estão entre as maiores doadoras de campanha do PT, do PMDB, do PSDB, do PSB. Nosso estatuto proíbe esse tipo de doação para preservar a independência política do PSOL. Seria incoerente ter qualquer tipo de relação com essas empresas se o partido prega, por exemplo, a auditoria da dívida pública, que interfere diretamente nos interesses dos bancos, por exemplo.
CC: Por meses, Randolfe apresentou-se como candidato do PSOL, mas nem sempre conseguiu pontuar nas pesquisas. A senhora imagina encerrar as eleições com qual porcentual de votos? E a bancada do PSOL no Congresso? Deve crescer?
LG: Dá tempo para crescer muito, até porque o PSOL tem uma militância que se animou muito com as jornadas de junho e já está nas ruas fazendo campanha, dentro do que a legislação permite. Esse é um capital que o PSOL tem e a maioria dos outros partidos não: uma militância animada e disposta a fazer campanha por ideal. Hoje, temos três deputados federais. A expectativa é duplicar ou triplicar nossa bancada na Câmara. No Rio de Janeiro, temos a convicção de eleger ao menos mais um deputado, além do Jean Wyllys e do Chico Alencar. No Pará, certamente conseguiremos eleger o Edmílson Rodrigues, que já foi prefeito de Belém em duas ocasiões. No Distrito Federal, o Toninho é candidato a governador e já aparece nas pesquisas com 6% das intenções de voto. É bem provável que puxe muitos votos para os candidatos a deputado federal por Brasília. No Ceará, temos um partido forte. Há um cenário de crescimento. Uma parcela significativa do eleitorado quer encontrar uma alternativa entre o reacionarismo do PSDB e o continuísmo do PT.
CC: Quem se apresenta dessa forma é o Eduardo Campos.
LG: Sim, ele se apresenta como terceira via, mas é, na realidade, um meio termo entre essas duas propostas. Está aliado ao PSDB em alguns estados, foi ministro de Lula… Enfim, ele é uma via intermediária entre os projetos de Aécio Neves e Dilma Rousseff. A verdadeira terceira via é o PSOL, com uma proposta verdadeiramente nova, de mudanças estruturais na economia e mais mecanismos de participação popular no governo.