Uma série de reportagens da Agência Câmara vem debatendo a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, proposta da deputada Luciana Genro. Confira:
Imposto sobre Grandes Fortunas reacende debate sobre reforma tributária
CCJ aprovou no início de junho proposta que institui o tributo sobre patrimônios acima de R$ 2 milhões, mas divergências sobre o imposto, previsto na Constituição de 1988, vêm impedindo que esse e outros projetos semelhantes sejam votados pelo Plenário.
A aprovação do projeto de Imposto sobre Grandes Fortunas na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), no último dia 9 de junho, reacendeu o debate sobre reforma tributária na Câmara. Os deputados acreditam que é preciso inverter a tendência dos impostos brasileiros, de taxar mais os mais pobres e desonerar os mais ricos. Só não há consenso de que esse tributo seja a melhor maneira para fazer isso.
O imposto está previsto na Constituição de 1988, mas nunca foi regulamentado. Essa antiga polêmica ressurgiu quando a CCJ aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 277/08, da deputada Luciana Genro (PSol-RS), que estabelece em R$ 2 milhões o piso para a cobrança, definindo esse patamar como fortuna.
A Receita Federal calcula em R$ 3,5 bilhões o potencial de arrecadação do imposto caso ele seja aprovado neste ano. Essa estimativa é baseada no substitutivo do relator da proposta na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), deputado João Dado (PDT-SP), que é fiscal da Receita de São Paulo. Pela proposta, as alíquotas seriam de 0,3% para patrimônios acima de R$ 2 milhões; 0,7% para patrimônios acima de R$ 10 milhões; e 1% para patrimônios acima de R$ 50 milhões.
Relator da proposta, João Dado acha que a força do capital tem impedido a votação do imposto.
Dado aguarda que a proposta seja levado ao plenário para apresentar seu parecer, que já está pronto. Ele também inseriu a possibilidade de deduzir do Imposto sobre Grandes Fortunas outros tributos sobre patrimônio, incidentes sobre bens imóveis (ITR e IPTU) e sobre veículos (IPVA), além de deduzir o próprio Imposto de Renda (IR). Essa é a proposta com maior chance de ir a votação, mas é difícil que ela seja aprovada. “Aqui é o capital que manda, foram os donos das grandes fortunas que impediram que a proposta fosse votada”, afirma.
Constituinte
As dificuldades para criação desse imposto começaram na Assembleia Constituinte, em 1988. Enquanto outros impostos, como o de renda, podem ser regulados por lei comum, esse precisa de uma lei complementar, que tem tramitação especial no Congresso e precisa ser aprovado em plenário por 2/3 dos deputados (342 parlamentares).
Luciana Genro, autora do projeto, destaca que a carga tributária no Brasil é mal distribuída.
Para Luciana Genro, essa foi uma manobra para não regulamentar o imposto. “A carga tributária brasileira é alta, mas é mal distribuída. Precisamos começar uma tributação mais forte sobre a riqueza e a propriedade, para podermos tributar menos o salário e o consumo”, defende.
A proposta sofre forte oposição. Em fevereiro, um projeto semelhante foi rejeitado no Senado, e na Câmara a CFT não conseguiu analisar a proposta, que era sempre retirada das votações. Com o prazo esgotado, a CCJ chamou para si a proposta, que foi aprovada e está pronta para ir ao plenário.
“É uma boa intenção, e temos de elogiar a deputada Luciana Genro pela dedicação, mas num mundo com capital sem fronteira o resultado seria o inverso, o imposto provocaria a fuga de investidores para outros países”, acredita o deputado Guilherme Campos (DEM-SP), um dos principais opositores da proposta na CFT.
Outros países
Para Guilherme Campos, o imposto foi pensado num momento em que a economia brasileira era bastante fechada, e mesmo assim o deputado argumenta que as experiências já não eram boas. De fato, o imposto sobre fortunas existiu na maior parte dos países europeus, e hoje apenas a França e parte das regiões da Suíça têm impostos semelhantes ao que se quer criar no Brasil. Na Índia, por exemplo, o imposto incide apenas sobre propriedades improdutivas, como casas vazias sem alugar.
Na França, o Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna, como é chamado, surgiu em 1982, foi extinto em 1987, mas recriado em 1989. Pessoas físicas que tenham patrimônio acima de 790 mil euros (R$ 2,5 milhões) pagam alíquotas que variam de 0,55% a 1,8% – a mais alta incide sobre patrimônios acima de 16 milhões de euros (R$ 46,7 milhões). Foram arrecadados R$ 4,42 bilhões de euros em 2007 (R$ 9,1 bilhões).
Luiz Carlos Hauly afirma que o imposto deveria recair sobre fluxos de renda.
“Esse é um imposto ideológico, e é uma antiga reivindicação dos socialistas, mas caiu em desuso e nem a esquerda quer mais esse imposto na Europa”, destaca o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que é especialista em tributação. Essa também é a justificativa dele para que a primeira proposta para regulamentar o imposto seja do então senador Fernando Henrique Cardoso.
De acordo com Hauly, o imposto fazia sentido em 1989, quando o ex-presidente apresentou o Projeto de Lei Complementar 202/89, mas não é possível mais pensar em tributar estoques, como ativos financeiros e patrimônio. O imposto, segundo ele, deveria recair sobre fluxos de renda, ou seja, quando essa patrimônio gera riqueza realmente. Além disso, argumenta, os impostos sobre patrimônio atuais são de difícil cobrança, e arrecadam pouco. Hauly ressalta que IPTU, ITR, IPVA e os impostos de transmissão de herança não passam de 4% da arrecadação no Brasil.
A proposta de Fernando Henrique e outras quatro semelhantes também estão prontas para serem votadas em plenário desde 2000, mas nunca entraram em pauta. O texto do ex-presidente estabelece como grande fortuna um patrimônio superior a 2 milhões de cruzados novos, o que equivale a R$ 6,3 milhões em valores atualizados.
Para os críticos da proposta, o caminho é rever os impostos brasileiros, principalmente as alíquotas do Imposto de Renda, e desonerar o consumo de bens consumidos pela população mais pobre, como medicamentos e itens da cesta básica.
Desigualdade no Brasil começa na dificuldade de identificar os mais ricos
Não há consenso sobre o Imposto sobre Grandes Fortunas, ou se ele será útil ou mesmo efetivo, mas para o relator do Projeto de Lei Complementar (PLP) 277/08 na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), deputado João Dado (PDT-SP), a importância é mudar o paradigma de que só os pequenos pagam.
O principal problema é descobrir quem são os ricos e quanto eles pagam de impostos. Segundo o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Márcio Pochmann, não há fonte de informação confiável sobre patrimônio no Brasil. A receita não disponibiliza os dados sobre as declarações patrimoniais do Imposto de Renda (IR) há vários anos, e não existe um banco de dados unificado de informações de cartórios.
Pochmann escreveu um livro sobre os ricos no Brasil, e o primeiro capítulo trata exatamente disso. “O capítulo se chama ‘os ricos se escondem’, e é exatamente porque temos informações completas sobre a pobreza, mas não sabemos quem são nem onde estão as grandes fortunas”, diz.
Com os dados disponíveis, o Ipea trabalha com a informação de que os 10% mais ricos concentram 75% da riqueza do País. Eles também são os que menos pagam impostos proporcionalmente a sua renda. “No Brasil, estão dando certo políticas distributivas de renda, mas é preciso melhorar políticas redistributivas, que passam por taxar os que podem pagar mais”, ressalta Pochmann.
Uma forma indireta de contagem pode ser conseguida com a pesquisa de uma consultoria do Boston Consulting Group sobre o número de investidores milionários no Brasil. As pessoas que investem no mercado financeiro pelo menos 1 milhão de dólares (cerca de R$ 1,8 milhão) somaram apenas 220 mil em 2008, mas movimentaram R$ 2,2 trilhões em aplicações financeiras.
Falta de transparência
O Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil também critica a Receita por falta de transparência. Para os auditores, a divulgação do patrimônio agregado por faixas não quebra o sigilo fiscal de ninguém, mas nem isso a Receita tem feito.
Segundo o diretor de estudos técnicos do sindicato, Luiz Antonio Benedito, a principal vantagem do Imposto sobre Grandes Fortunas seria atender o princípio da capacidade contributiva, ou seja, quem tem mais deve pagar mais. No Imposto de Renda atual, por exemplo, não há diferença entre quem ganha R$ 5 mil ou R$ 5 milhões, tudo é tributado pela mesma renda.
“Há uma diferença muito grande nessa faixa de renda sem variação nenhuma dos percentuais, e já o Imposto sobre Grandes Fortunas vem ao encontro disso para atender ao principio constitucional da capacidade contributiva”, afirma.
Para tributarista, classe média seria penalizada com imposto
Uma das principais críticas feitas à proposta do Imposto sobre Grandes Fortunas é o patamar de patrimônio entendido como fortuna, que começa em R$ 2 milhões. Para o especialista em tributação Ives Gandra Martins, o imposto penalizaria a classe média, que não pode usar de subterfúgios para fugir da taxação. Já os grandes patrimônios iriam se mudar para fora do País, ou seriam transferidos para empresas, que não sofreriam essa tributação.
Ives Gandra diz que o imposto desestimularia a poupança e incidiria sobre um patrimônio que restou após o pagamento de vários tributos, inclusive Imposto de Renda (IR), IPTU e IPVA. A solução, para ele, seria uma reforma do IR. “O Imposto de Renda, sim, porque incide sobre o que eu estou ganhando, enquanto o sobre patrimônio incide sobre o que eu já ganhei e foi tributado pesadamente no Brasil”, afirma.
Para a autora do projeto, deputada Luciana Genro (Psol-RS), não há problemas em rever o limite do que é considerado fortuna, mas é preciso cobrar mais impostos de quem pode contribuir, e desonerar quem ganha salários. “Eu tenho outro projeto para atualizar as alíquotas do Imposto de Renda também, mas o de grandes fortunas está sendo aprovado primeiro, porque a carga tributaria do Brasil pode ser alta, mas sua pior característica é ser mal distribuída”, destaca.
A deputada explica que, ao não corrigir as faixas de alíquotas do IR, o governo cobra imposto de pessoas cada vez mais pobres, que vão chegando ao patamar mínimo de pagamento, hoje em R$ 1.499,15. Também não há faixas acima de R$ 3.743,20, o que segundo ela deveria ser corrigido.
Imposto sobre consumo
O especialista em finanças públicas Amir Khair acredita que o Imposto sobre Grandes Fortunas tributaria o lado certo da equação, porque quem paga as custas do setor público são os mais pobres, com impostos sobre consumo, como o ICMS. “Há uma espécie de inversão na participação das despesas do País. O que está faltando é reduzir a tributação sobre o consumo, e aumentar a tributação sobre patrimônio e renda”, afirma.
Para ele, é preciso também tributar a herança no Brasil. Em tramitação na Câmara, a Proposta de Emenda à Constituição 139/99, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), cria imposto progressivo sobre heranças, com a possibilidade de uma taxação maior para as grandes fortunas.