À comissão de ética do PT
A proposta aprovada na executiva nacional do PT de tratar minhas posições políticas e minhas divergências com o governo federal na comissão de ética é inaceitável. A representação formulada por Silvio Pereira não trata da ética. E a disciplina, como veremos, é apenas usada como pretexto. O verdadeiro conteúdo do debate é político, de tal forma que apresento-me nesta comissão em respeito ao partido, mesmo discordando radicalmente desta tentativa de evitar o debate democrático acerca das enormes divergências políticas em curso atualmente no PT. Por isso, em primeiro lugar, quero que a comissão conheça a síntese de minha posição política, uma posição que tenho defendido em discursos, artigos, entrevistas, reuniões da bancada e junto aos militantes do PT e movimentos sociais.
Começo por dizer algo que está óbvio: não há quem não perceba as contradições entre as ações do governo e as propostas até ontem defendidas pelo PT. A militância tenta entender os movimentos do governo cuja eleição alimenta as esperanças de milhões, mas que cada vez mais se distancia dos compromissos de mudança assumidos na campanha eleitoral. Recentemente, o presidente Lula reuniu-se com os deputados do PSDB e fez uma autocrítica da posição do partido em relação às reformas do governo FHC. O PP, ex-PPB e ex-Arena, chegou a anunciar a adesão formal à base governista, voltando atrás por que um setor minoritário da bancada não aceitou. O PMDB vem sendo seduzido para a base governista com o mesmo tipo de promessa usada por FHC. As elites dominantes durante o governo FHC estão contempladas pela política econômica do governo e pelas reformas apresentadas, especialmente a da Previdência. Essas são todas posições políticas, nada mais do que isso. Queremos debatê-las. Sem ameaças, sem punições. Não propomos comissão de ética para quem tem defendido o acordo com o FMI, o aumento dos juros, a reforma da previdência nos moldes da de FHC. Propomos que o partido discuta essas novas velhas idéias de uma parte dos dirigentes do partido e do governo.
Na política econômica, o que vemos não é o preparo de uma transição para um novo modelo, que enfrente os mercados e as imposições do FMI, mas o aprofundamento da dependência do capital financeiro especulativo. O documento elaborado pelo ministro Pallocci, ‘Política Econômica e Reformas Estruturais’, deixa muito claro que a estratégia consiste em ganhar a confiança dos mercados, através de altas metas de superávit primário e de reformas que também interessam aos mercados. A lógica econômica é a mesma de FHC, que mantém a fragilidade externa, deixando o país à mercê da especulação financeira, tornando difícil até mesmo uma modesta queda na taxa de juros. Essa política não permite um crescimento econômico sustentado, com distribuição de renda, aumento da massa salarial e recuperação dos serviços públicos. Ao contrário, vai corroendo cada vez mais o Orçamento, esvaziando até o Fome Zero. Um modelo econômico que tem desagradado até mesmo os setores da burguesia nacional representados pelo vice-presidente José Alencar, que tem dado duras declarações contra a política de juros altos. Para os trabalhadores, a consequência é ainda pior, pois com juros mais ou menos altos esse modelo exige que os salários sigam baixos para garantir competitividade internacional, o que fez o governo opor-se explicitamente à reivindicação de gatilho salarial feita pelos metalúrgicos de São José dos Campos. A reforma da Previdência está integrada nessa lógica. Os fundos de pensão entregam aos bancos o filé-mignon das aposentadorias, um negócio altamente lucrativo.
Se nesse ponto já havia uma decisão anterior do partido favorável, em todos os outros itens da reforma ou o PT já havia se oposto explicitamente ou nunca havia se manifestado. O aumento da idade mínima, que atinge quem começou a trabalhar mais cedo, geralmente os mais pobres; a desvinculação do reajuste dos aposentados ao dos trabalhadores da ativa, medida que no regime geral fez chegar a 65% de aposentados recebendo apenas um salário mínimo. Todas foram medidas que o partido combateu duramente quando FHC as apresentou para o Regime Geral. A contribuição dos aposentados foi considerada um confisco nas palavras usadas pelos petistas em sua declaração de voto na CCJ em 1999, e um dos alvos dos ataques ao candidato Rigotto nas eleições gaúchas.
Todas essas medidas vão gerar uma economia de R$ 50 bilhões em 30 anos, quantia gasta em três meses de juros da dívida!
É verdade que o PT vem, há anos, deixando para trás bandeiras como a suspensão do pagamento da dívida externa e a estatização do sistema financeiro. Nossa política não é que o governo encampe as teses da esquerda do partido. Só queremos coerência com o dito até ontem e com as resoluções do Encontro Nacional que antecedeu o processo eleitoral. É verdade que a ‘Carta ao Povo Brasileiro’ anunciou o cumprimento dos contratos com o FMI, mas ela não passou por nenhuma instância partidária. Lembremos do contrato histórico do PT com o povo brasileiro, das mudanças a favor dos mais pobres, da recuperação dos serviços públicos, do respeito aos servidores, do combate à política tradicional do toma-lá-dá-cá. Estamos atuando em defesa do PT, para que ele não sucumba à lógica comum a todos os partidos que já governaram este país, que opõe os compromissos de campanha às ações de governo. Queremos seguir essa luta no partido e na sociedade, que só tem chance de ser vitoriosa se muitas outras vozes se levantarem e se o povo que elegeu Lula se mobilizar para exigir mudanças.
Repudiar os métodos estalinistas
Está claro como o dia: o processo aberto com a comissão de ética não é disciplinar, mas político. Isso não pode ficar mais evidente do que nas palavras do presidente do partido, o companheiro José Genoíno, ditas para a executiva nacional do PT, que votou a abertura da comissão, e repetidas também para a imprensa nacional. Genoíno disse que a direção do partido já resolveu o problema da economia, das alianças e da política externa; apenas falta resolver a questão dos radicais. Quando Genoíno diz que foi resolvido o problema da economia é porque os grandes empresários, o FMI, o Banco Mundial estão satisfeitos e confiantes no governo Lula e, em sua ótica, isso é fundamental. Os principais dirigentes políticos do governo mostram-se orgulhosos com essa confiança. Sim, porque não é possível dizer que a questão da economia está resolvida para o povo. Com as taxas de juros escorchantes e o superávit fiscal draconiano caminhamos para a continuidade da estagnação econômica. Como o presidente do partido pode dizer que resolvemos o problema da economia quando aumenta o desemprego a cada mês nos últimos quatro meses de governo Lula? Quanto à política de alianças, a satisfação de Genoíno é não apenas com a aliança com o PL, repudiada por Heloísa Helena e por milhares de petistas. A colaboração com a alta burguesia, com as elites privilegiadas do país encontrou máxima expressão na participação do PMDB na base do governo. Quanto à política externa, o governo não rompe as negociações com a Alca e o Departamento de Estado dos Estados Unidos não se cansa de elogiar o governo federal. Para milhares de petistas, tudo isso é preocupante. A indignação cresce no PT e os chamados radicais estão expressando não apenas suas idéias, mas as idéias de milhares de petistas que infelizmente não encontram espaço para se expressar e para decidir. Os chamados radicais estão expressando uma força que cresce na base social do partido.
O FMI exige que o partido seja controlado. Os bancos exigem. Essa é a realidade. Calar os chamados radicais, silenciar as críticas é o que falta, segundo Genoíno? Mas o que o presidente do partido não se dá conta é de que nossas vozes não serão caladas. Ameaçar, punir, atacar direitos democráticos do PT apenas manchará a história do partido. Qual o sentido de provocar essa mancha? Apenas para agradar e conquistar mais ainda a confiança dos chamados mercados. Para agradar os partidos tradicionais, que exigem em alto e bom som a disciplina petista? Não, tal posição apenas enfraquece o PT. Nosso partido sempre foi plural e daí veio um dos vetores de sua força. Nos construímos criticando o modelo burocrático dos países do socialismo realmente inexistente. Não podemos abandonar essa crítica justamente agora que o principal líder do PT chegou à presidência da República. Seria um grave erro. Qualquer análise séria reconhece que o governo federal está adotando posições opostas às definidas democraticamente pelo partido. Não falamos apenas dos documentos históricos, como a carta de princípios do PT. Falamos de documentos recentes, que nortearam a participação eleitoral do partido, como as diretrizes do programa votado em Recife em dezembro de 2001.
O partido não pode deixar de defender suas posições democraticamente definidas. A direção do partido não tem autoridade para passar por cima de decisão das bases. Não é democrático. Não é justo. E muito menos pode fazer isso em nome de uma defesa incondicional das posições do governo. Os próprios dirigentes, como o companheiro Genoíno, afirmaram inúmeras vezes que o governo não é apenas do PT, mas de aliança. Como o PT pode contribuir com o país? Dizendo simplesmente “sim, senhor” a todas as propostas do governo, abandonando uma posição de autonomia? Isso seria abandonar a crítica feita ao burocratismo dos países do leste e da ex-URSS. Mas se a direção do partido acha que deve atuar assim, então deve sustentar sua posição junto ao partido e convencer o partido. Esse processo não foi feito. Propusemos na reunião da executiva uma consulta à militância sobre as questões da Previdência e da autonomia do Banco Central. Insistimos nessa proposta, mecanismo previsto no estatuto do partido.
Agora, pela imprensa, tentam criar a idéia de que desrespeitamos o presidente. Isso é absurdo. Estamos realizando um debate político. Tal debate é sim de caráter público, como tem sido pública a defesa que os ministros fazem do acordo com o FMI e como foi pública a defesa que o presidente do partido fez da expulsão de alguns parlamentares, o que apenas serviu para acirrar os ânimos. A representação de Silvio Pereira afirma que tal debate público prova que não queremos o debate interno. Mas por que a acusação serve apenas para alguns? E o vice-presidente da República não tem criticado corretamente a manutenção dos juros, uma posição expressa alto e em bom som pelos jornais, afirmando ainda que falta competência ao Banco Central, uma acusação que atinge diretamente o ministro Palloci. Mas Silvio Pereira não pode propor a comissão de ética para o vice de Lula, porque ele é do Partido Liberal, não do PT? Não, não é por isso. Nem passaria pela cabeça de Silvio Pereira criticar José Alencar, porque ele está nas graças do presidente da República.
Não, o problema é que a representação de Silvio Pereira visa apenas a resolver o problema dos radicais. Não quer demonstrar nada, apenas montar uma peça acusatória que permita uma campanha contra determinados parlamentares, criando um clima de intimidação no partido. Uma intimidação que atinge inclusive os parlamentares que “ousaram” fazer um abaixo assinado para nos defender. Nossos acusadores sabem que a intimidação é uma força poderosa em momentos de ausência de grandes mobilizações sociais. Até agora, esse método ganhou alguns pontos no partido, de tal forma que até mesmo a bancada aceitou votar minha exclusão das suas atividades por um fato que não foi de minha responsabilidade – a divulgação das fitas com intervenções de Lula. Alguns parlamentares, na reunião, chegaram a deixar claro que minha punição seria mais branda se eu condenasse os atos do deputado João Fontes, responsável pela divulgação das fitas.
Queriam me meter na engrenagem típica do estalinismo: condene para ser absolvida. Não, não me sujeito a esse jogo, assim como não me sujeitei e ele quando Lindberg Farias e Heloísa Helena foram visitar Leonel Brizola. Nem João Fontes nem Heloísa ou Lindberg cometeram crime algum e esses episódios não tem nada que ver com traição de classe ou algo pelo estilo. Isso sim merece condenação, não as iniciativas dos companheiros, cujo objetivo era e segue sendo defender suas idéias opostas as contra-reformas da Previdência defendidas pelo FMI, que FHC não conseguiu implementar e que agora fazem parte da pauta do governo. Vale dizer que queremos sim reformas, mas que representem verdadeiras reformas que ampliem direitos para os trabalhadores da iniciativa privada, não essas contra-reformas que atacam o pouco que têm os trabalhadores públicos. Se esse debate for feito sem ameaças e punições, temos certeza de que não votaremos contra a bancada, porque a bancada se sensibilizará para os argumentos que o PT sempre defendeu e decidirá manter-se fiel a sua história, não às exigências do FMI. Nosso apelo, portanto, é para que o debate não seja obscurecido.
Finalmente, queremos agradecer à solidariedade de milhares de petistas em nossa defesa, de sindicatos, de assembléias de trabalhadores. Queremos agradecer o apoio aberto de intelectuais como Luis Fernando Veríssimo, Emir Sader, Chico Oliveira, Plínio de Arruda Sampaio, Dalmo Dallari, Eduardo Suplicy e Reinaldo Gonçalves, entre outros. Os intelectuais têm particular importância porque eles refletem algo mais profundo. São sinais de ventos favoráveis à democracia no partido e ao resgate das idéias anticapitalistas do partido. São como as folhas das árvores que se movem antes dos galhos.
Se a comissão de ética não colocar as coisas em seu devido lugar e aceitar as pressões políticas de uma parte dos dirigentes do governo e do partido, a mensagem será clara: quem não obedecer à ordem de silenciar e se acomodar não terá mais espaço no partido. A democracia interna será pisoteada. As bandeiras das lutas das classes trabalhadoras não poderão mais ser defendidas dentro do PT de modo coerente. Por isso, evitar as expulsões é defender o PT. Defender sua razão de ser quando foi fundado por Lula e outros combatentes no calor das greves do ABC.
Luciana Genro