NOTA JURÍDICA SOBRE INELEGIBILIDADE POR PARENTESCO
Caso concreto: Luciana Genro pretende ser candidata à vereança municipal em Porto Alegre (RS), em 2012, capital do estado no qual o seu progenitor Tarso Genro será empossado governador, em janeiro de 2011. Uma leitura apressada do texto constitucional parece sugerir sua inelegibilidade. Errado: não existe impedimento legal para a sua candidatura, como será demonstrado a seguir.
Texto constitucional:
“São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos e afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”. (Art. 14, parágrafo da C.F.)
I
A norma constitucional acima transcrita é de eficácia plena. É autoaplicável. Ela reporta-se a direito público subjetivo de caráter político, aparentemente restringindo-o. Bem examinada, porém, ela o faz para protegê-lo.
O direito de votar e ser votado, lapidar da democracia moderna e do Estado de Direito Democrático, é um espaço privilegiado da liberdade política protegido pela norma constitucional. Sua interpretação, por isso, deve ser feita a partir da sua teleologia: o alargamento da liberdade política e não a sua restrição.
Esta norma constitucional de “eficácia plena” deve ser interpretada como lei diretamente incidente sobre o caso concreto, pois não necessita de qualquer outra mediação. A “eficácia plena” sujeita o mundo dos fatos ao comando direto da Constituição. É expressão máxima da sua “força normativa” (Konrad Hesse).
As normas de eficácia plena que “incidem imediatamente e dispensam legislação complementar;” não são “normas de eficácia contida” e produzem imediatamente efeitos”; (…) só “as normas de eficácia limitada dependem de lei orgânica ou complementar para a aplicação do seu princípio de eficácia ab-rogante de legislação precedente incompatível” (segundo expressão de Geraldo Ataliba, ‘paralisante da eficácia destas leis, sem ab-rogá-las), “entre elas se incluindo as normas programáticas”#.
A regulação que a norma, então, realiza é para dar potência constitucional ao direito público subjetivo de natureza política. É norma, portanto, não restritiva de qualquer direito, mas norma que veio para criar obstáculos à manipulação do direito a votar e ser votado no âmbito das relações de família.
São normas que devem ser interpretadas à luz da vitalidade desejada pelo constituinte, integrantes de um amplo sistema de erguimento do direito público subjetivo de votar e ser votado: “Sem prejuízo do que se vem afirmar, o fato é que as especificidades das normas constitucionais levaram a doutrina e a jurisprudência, já há muitos anos, a desenvolver ou sistematizar um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional. Tais princípios, de natureza instrumental, e não material, são pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos da aplicação das normas constitucionais. São eles, na ordenação que se afigura mais adequada para as circunstâncias brasileiras: o da supremacia da Constituição, o da presunção da constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade”#.
A finalidade da norma em exame é, em conclusão, impedir um certo tipo de deformação instrumental do superior princípio constitucional do sufrágio universal como direito político. Este – segundo o juízo do constituinte – poderia ser instrumentalizado pelo parentesco. Esta, a teleologia da norma constitucional e, em conseqüência, também o ponto de partida metodológico para a sua interpretação.
O senso comum, ou melhor, o “bom senso comum”, que pensa adequadamente a prevalência da constituição sobre todo o sistema jurídico, assevera que qualquer interpretação conforme a Constituição parte da unidade do sistema constitucional, da sua razoabilidade e da sua efetividade: “O sufrágio é um direito público subjetivo de natureza política, que tem o cidadão de eleger, ser eleito e de participar da organização e da atividade do poder estatal. Nele consubstancia-se o consentimento do povo que legitima o exercício do poder; aí estando sua função primordial, que é a seleção e nomeação das pessoas que hão de exercer as atividades governamentais”#.
Conclui-se, afinal, que as exceções registradas nas normas de porte constitucional de eficácia plena não podem ser entendidas nem como contenções nem como restrições daquele direito público subjetivo de natureza política. Só podem ser normas existentes para a afirmação plena deste direito e estão ali com o objetivo de proteger a comunidade de algum tipo de exercício que desvie as suas finalidades.
II
O mandamento da norma constitucional está definido, então, pelas seguintes abstrações: a) a afirmativa de que “são inelegíveis” “os consaguíneos e afins…”; b) a afirmativa, a seguir, que a restrição é localizada no “território da jurisdição”; c) e, ainda, fazendo o regramento de uma exceção dentro da exceção: o titular de mandato eletivo que concorre à reeleição não precisa afastar-se do cargo seis meses antes.
A norma constitucional, então, no que interessa ao caso de Luciana Genro, tem duas especificações que devem ser consideradas, para a consideração do seu caso concreto:
a primeira diz respeito à questão da territorialidade e da jurisdição de uma autoridade, cuja situação fática – exercício de mandato majoritário no território, por parte do seu progenitor – ensejaria a sua inelegibilidade. (O constituinte delimitou os efeitos da mesma com o vínculo território-jurisdição).
a segunda, diz respeito à exceção mesma, contida na norma, que permite à autoridade que concorre à reeleição faça-o sem prévio licenciamento. (O constituinte, como se lê no texto constitucional, excepcionou o mandatário que concorre à reeleição relativamente à necessidade do seu afastamento).
III
Em relação à primeira especificação lembre-se que o território é tanto um fato histórico-geográfico – um espaço concreto – como é uma ficção, sobre a qual o exercente de mandato executivo exerce a jurisdição.
Um território em relação ao mandatário eleito, então, é uma ficção jurídico-institucional que é ente da federação. Seu espaço territorial tornado espaço institucional, é diferente do território concreto e geográfico do ente federado#. O governador exerce a sua jurisdição no âmbito do estado, não no município. Neste, quem exerce a jurisdição é o prefeito.
A segunda especificação oriunda do texto constitucional (quem já exerce o mandato não precisa licenciar-se para concorrer) poderia levar à absurda conclusão que o exercente de mandato que não precisa licenciar-se para concorrer, impede que parente seu concorra a outro cargo em outra “jurisdição”.
Se a norma constitucional permitiu a reeleição do governante, sem licenciamento prévio e cercou de cautelas sua movimentação política, a norma também já cercou de cautelas o possível “uso do cargo” em benefício de terceiros, em qualquer território.
A aplicabilidade da proibição ensejada pela norma constitucional, em conseqüência, não se dá nem pela sua finalidade (evitar abusos protecionistas em benefício de parentes), nem pela sua literalidade objetiva (o território ao qual ele se reporta não é o território tomado como conceito geográfico).
Assim, concluo que não há nenhum impedimento a que Luciana Genro concorra à vereança na próxima eleição municipal de Porto Alegre.
Tarso Genro
Advogado
Ex-Ministro da Justiça