A Frente Parlamentar de enfrentamento ao HIV, AIDS, Sífilis, Hepatites Virais, Outras ISTs e Tuberculose foi instalada nesta sexta-feira (24/03) na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. A iniciativa é coordenada conjuntamente pela deputada Luciana Genro (PSOL), que já coordenava a Frente na legislatura anterior, pela deputada Laura Sito (PT) e pelo deputado Leonel Radde (PT).
O Rio Grande do Sul e Porto Alegre, há quinze anos, apresentam as maiores taxas de detecção e coeficiente de mortalidade por Aids do Brasil. O cenário é descrito como uma epidemia generalizada por parte dos movimentos ligados ao tema, e da mesma forma foi colocado pelo Ministério da Saúde durante o lançamento da Frente.
Na ocasião, Carla Almeida, do Fórum de ONGs Aids RS, relatou estar desesperançosa com uma mudança de cenário. “Pouco foi feito na última década para reverter este quadro no RS, este cenário catastrófico. A tuberculose e estas outras doenças têm uma relação direta com os marcadores sociais e as desigualdades. Estas doenças são negligenciadas por que atingem populações que são negligenciadas. A tuberculose tem alta carga entre pessoas privadas de liberdade, pessoas em situação de rua, migrantes, indígenas. O quanto valem estas vidas?”, questionou.
“Os dados são muito preocupantes. O Rio Grande do Sul está na liderança dessa problemática. Os desafios são gigantescos, a nossa Frente tem essa tradição de ser um canal de expressão da sociedade civil, cobrança dos governos, articulação com todos os movimentos que atuam nessa pauta”, colocou Luciana Genro. A deputada informou que a Frente também já solicitou reunião com a secretária de Saúde do RS, Arita Bergmann, sobre esse tema.
O deputado Leonel Radde apontou que, se não fosse a iniciativa das organizações e entidades voltadas ao tema, o cenário certamente seria ainda mais grave. “A vulnerabilidade social atinge de uma forma violenta, mas ao mesmo tempo invisibiliza parte da população”, apontou. A deputada Laura Sito lembrou que “a população negra apresenta o dobro de casos de AIDS, evidenciando os efeitos das desigualdades estruturais no acesso às políticas públicas e serviços de saúde”.
A gravidade do quadro também foi destacada por Carla Jarczewski, que representou a Secretaria Estadual de Saúde. “A situação nos preocupa muito, principalmente a situação da coinfecção. Nós sabemos que hoje a tuberculose é a principal causa de morte dos pacientes vivendo com HIV/Aids”, informou.
Representando o município de Porto Alegre, Daila Alena Renck da Silva, da Coordenação Política IST/Aids, Hepatites Viras e Tuberculose da Secretaria Municipal de Saúde, destacou a importância de haver uma união de forças para se enfrentar o problema: “Já está descrito no Plano Municipal de Saúde que só vamos conseguir enfrentar essa lista de agravos com essa constituição de pessoas que estão aqui: gestão, parlamentares, sociedade civil organizada”, disse, mencionando a necessidade de se recompor o orçamento voltado para o tema.
O Ministério da Saúde garantiu estar comprometido com mudar o cenário desolador que o Rio Grande do Sul e o Brasil enfrentam nesse sentido, conforme reiterou Draurio Barreira Cravo Neto, Diretor do Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DVIAHV) da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) do Ministério da Saúde.
“Vamos colocar uma agenda ousada de eliminação de praticamente todas as doenças que estamos falando aqui nos próximos anos. Temos um plano de trabalho interministerial, com sete ministérios. Sabemos que é preciso um esforço coletivo englobando a sociedade civil, academia, poderes”, garantiu. A situação gaúcha, porém, é ainda mais grave e exige ainda mais empenho para ser combatida. “A situação do RS tem que ser encarada como um problema de longa data. É uma epidemia generalizada de HIV, diferente de outros estados”, afirmou o diretor.
Essa questão do esforço conjunto também foi destacada por Bruno Kauss, da UNAIDS. “É fundamental para o enfrentamento dessas doenças que haja um esforço composto por diferentes atores”, disse. Rubens Raffo Pinto, coordenador técnico do Fórum ONG AIDS do RS, também abordou essa questão, além de chamar atenção para o preconceito que ainda existe na sociedade. “As pessoas com HIV/ Aids precisam conseguir sobreviver com qualidade de vida”, colocou.
Populações vulneráveis são maiores afetadas pela coinfecção de HIV e tuberculose
O dia 24 de março é também o Dia Mundial de Combate à Tuberculose. Por isso, além da instalação da Frente Parlamentar, ocorreu ainda a mesa temática intitulada: “Coinfecção Tuberculose/HIV e o contexto de vulnerabilidades sociais”. Os convidados ressaltaram a importância de se pensar em ações conjuntas dentre os diversos entes públicos e sociedade para se combater o cenário grave que o Rio Grande do Sul enfrenta há anos em relação ao tema.
Segundo dados do Informe Epidemiológico do Rio Grande do Sul – Tuberculose 2022, no Brasil, em 2021, registraram-se 68.271 casos novos de tuberculose, com um coeficiente de incidência de 32,0 casos por 100 mil habitantes. Em 2020, foram notificados cerca de 4,5 mil óbitos pela doença, com um coeficiente de mortalidade de 2,1 óbitos por 100 mil habitantes.
O Rio Grande do Sul permanece como um dos estados com alta carga de tuberculose e de coinfecção, dentro do cenário nacional. Em 2021, foram notificados 4.769 casos novos, o que corresponde a um coeficiente de incidência de 41,6 casos/100.000 mil habitantes. Comparando com o Brasil, o Estado tem um coeficiente de incidência de tuberculose acima da média nacional, que no ano de 2021 foi de 32,0 casos/100 mil habitantes.
A tuberculose integra a lista das chamadas “doenças oportunistas”, que atinge pessoas vivendo com HIV que estejam com a imunidade baixa em função da ausência de diagnóstico ou tratamento. Liliana Romero Vega, representando o Ministério da Saúde, trouxe dados referentes ao risco de infecção por tuberculose: pessoas indígenas apresentam três vezes mais risco de adoecimento por tuberculose do que a população em geral. Pessoas vivendo com HIV apresentam 19 vezes mais risco, enquanto para pessoas privadas em liberdade o risco sobe para 23 vezes, e chega a 54 para pessoas em situação de rua.
Falando em nome do Programa Estadual de Controle da Tuberculose, Carla Jarczewski destacou que desde o início dos anos 2000 a taxa de incidência é entre 40 e 45 casos por 100 mil habitantes. “Isso nos preocupa demais. Não é raro ver pessoas em situação de rua, egressos do sistema prisional, que vivem com HIV e tuberculose”, apontou. Ela afirmou que atualmente é possível ter uma taxa de cura de 53% das pessoas com tuberculose no estado, mas esse número fica bastante preocupante dentre os coinfectados com HIV, sendo de apenas 33% em 2021.
Em Porto Alegre, 64% das notificações de tuberculose vêm dos hospitais, afirmou Cristina Waechter, Coordenadora do Programa Municipal de Combate à Tuberculose da Coordenadoria da Atenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis da SMS. Isso significa que as pessoas não estão tendo oportunidade de ter diagnóstico na atenção primária. “Precisamos juntar esforços entre as redes. A pessoa com tuberculose precisa ser olhada como um todo, principalmente se estiver em situação de rua”, refletiu.
Nêmora Barcellos, médica e pesquisadora especialista no tema, sugeriu que ao final do ano se analise se algo mudou a partir da discussão que começou a ser feita na instalação da Frente. “Precisamos olhar para a integralidade para conseguir construir o princípio da equidade. Menos de 50% das pessoas começam com retrovirais até seis meses depois do diagnóstico de tuberculose, enquanto deveria ser 100%”, apontou.
Para enfrentar o problema da tuberculose, é preciso superar a histórica submissão da área da saúde em relação à segurança em termos de pessoas privadas de liberdade, destacou Neuza Heinzelmann, do Comitê Estadual para Enfrentamento da Tuberculose (CEETB-RS). “Em relação à população de rua, é preciso compromissos para instituir políticas sociais de construção de autonomia, precisamos ampliar equipamentos. Para indígenas e imigrantes, quilombolas, LGBT, outros grupos vulneráveis, temos que ter equipes de saúde capacitadas para interagir com essas populações”, afirmou.
Carla Almeida, do Fórum de ONGs Aids RS, colocou como “criminoso” o índice de 33% de cura de cura de tuberculose quando combinada com HIV, visto que o índice de cura espontânea de tuberculose é 25%. “O estado não tem na sua pauta enfrentar cenário de epidemia generalizada, de coinfecção e mortalidade. Essas doenças são negligenciadas porque atingem e matam pessoas que ‘não importam’”, colocou, trazendo o dado de que 63% das pessoas com tuberculose são pretas e pardas.
Em 2022, ela relata que o estado do RS utilizou apenas R$ 300 mil dos R$ 3 milhões de recursos destinados à pauta enviados pelo governo federal. “A gente tem recurso, se não está sendo usado é porque não prioriza. Inclusive o governo estadual não investe um centavo de recursos próprios. É preciso ter ações articuladas entre os três entes federativos, pautar como prioridade dentro da gestão. E isso precisa ser feito associado a uma agenda comprometida com o enfrentamento das desigualdades, do machismo, racismo e LGBTfobia”, destacou.
A Frente Parlamentar é uma articulação do Fórum de ONGs Aids RS, que reúne os movimentos sociais que atuam na pauta. A iniciativa existe há diversas legislaturas e já foi coordenada anteriormente também por Pedro Ruas, ex-deputado estadual do PSOL, e mais recentemente por Luciana Genro, entre 2018 e 2022.