Pacientes vivem em casas, no que era uma comunidade fechada. Foto: MP-RS
Pacientes vivem em casas, no que era uma comunidade fechada. Foto: MP-RS

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Fundado nos anos 1940 para isolar pacientes com hanseníase, o Hospital Colônia Itapuã (HCI), em Viamão, está ameaçado de fechamento contra a vontade dos moradores e familiares. Isso porque muitos deles vivem lá há décadas e não têm outro lugar para chamar de lar. Além disso, o processo que pode levar à venda dos mais de 1500 hectares está sendo realizado sem o diálogo necessário com a comunidade, segundo relatam integrantes do movimento pela permanência da instituição.

A prefeitura de Viamão pretende votar nos próximos dias um projeto de lei que autoriza o Executivo Municipal a firmar convênio com o Estado, que é responsável pelo HCI, visando proceder a desinstitucionalização dos pacientes. Pela proposta, os moradores seriam transferidos para residenciais terapêuticos, nos moldes do que é realizado com pacientes psiquiátricos. Porém, não há legislação que preveja a desinstitucionalização específica de pacientes com hanseníase e nem os direitos deles nesta situação, o que causa grande insegurança na comunidade.

Diante deste cenário, o mandato da deputada Luciana Genro (PSOL) foi procurado por familiares de pacientes vivendo no local em busca de apoio na luta contra o fechamento. Igor Correa, cujos avós residem no HCI, integra essa mobilização. Ele relatou que um dos problemas é que todo o processo vem ocorrendo “de forma muito sorrateira”. “Estamos lidando com pessoas que foram estigmatizadas pelo Estado e agora estão passando por isto novamente, de uma forma muito desumana, pois não sabem o que fazer e o que será do resto de suas vidas. Muitos estão na beira de seus 80 anos e sem expectativa, sem nenhum ofício do Estado e nem do município. O que sabemos é que a Secretaria (Estadual de Saúde) está articulando até com pousadas aqui de Itapuã pra receber alguns pacientes”, afirmou ele.

Pórtico de entrada do HCI. Foto: Prefeitura de Viamão.

A partir da luta dos familiares e moradores do hospital, Luciana Genro irá questionar o governo sobre o papel do Estado nos planos da prefeitura. “A prefeitura e o governo não podem decidir de forma autoritária sobre o destino do hospital e dos moradores, sem consultar a eles e suas famílias. Estamos falando de vidas que foram estigmatizadas durante décadas, alvo de uma política de isolamento compulsório que causou muita dor e sofrimento, e agora são tratadas novamente de forma arbitrária pelo Estado. Não podemos permitir, estamos ao lado da comunidade do HCI nesta luta”, disse a deputada.

O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) criou, devido à situação do HCI, um núcleo em Porto Alegre e Região Metropolitana, que já buscou apoio da Defensoria Pública e do Ministério Público para lidar com a pauta. Para o próximo dia 22, está marcada uma audiência pública na Câmara de Viamão, e já nesta quinta-feira (9) o Preserva HCI, como o movimento é denominado, irá se manifestar em frente ao Legislativo municipal contra o projeto do prefeito.

“A gente tem que fazer um tumulto, porque a prefeitura de Viamão sempre enxerga os problemas só no tamanho da cidade. Eles têm que entender que os pacientes são vistos a nível de direitos humanos pelo Estado, pela nação e até por entidades internacionais”, coloca Magda Chagas, coordenadora do núcleo do Morhan em Porto Alegre e região, acrescentando que a entidade tem apoio de pessoas que atuam na ONU e na OMS. Ela, que é neta de pacientes e enfermeira, conta que devido aos anos de isolamento, muitos moradores não demonstram condições psíquicas de sair do local. “Eles não sabem viver fora do hospital, agora com a questão do fechamento estão com depressão, ansiedade, com síndrome do pânico”, relata. Além disso, o projeto apresentado pela prefeitura tem duração limitada de 60 meses, o que causa temor de que os internos não teriam garantias de permanência nas residências para onde forem transferidos.

Magda ainda destaca que há assaltos ocorrendo no local, inclusive com uma paciente idosa tendo sua casa invadida durante a noite. Ela já entrou em contato com a Promotoria da cidade sobre o assunto, que irá questionar o prefeito. “Ocorre que os pacientes são de Viamão, mas a segurança é do Estado. São funcionários estaduais que trabalham lá, mas muitos já foram demitidos nesse desmonte. O Estado largou tudo na mão do prefeito, só que o prefeito diz que o Estado está resolvendo, mas a gente já sabe que não”, explicou. O movimento cobra que haja maior segurança no local, por parte da Brigada Militar ou de forma privada, destacando que o Hospital fica a 18km do posto da BM mais próximo.

Hospital conta também com cemitério próprio. Foto: Prefeitura de Viamão

A negligência com a situação dos pacientes também é mencionada por Igor, inclusive em relação à desocupação do local. “Praticamente nos foi dado até final de outubro pra tirar nossos familiares. Quem não tem familiares, eles estão procurando casa pra alugar, sem perguntar a opinião destas pessoas, se querem sair de suas casas onde possuem suas vidas próprias pra morarem com outras pessoas, ou irem para casas que não fazem ideia de onde e como será”, aponta ele. Segundo Igor, nada está acontecendo de forma oficial e já há especulações de que estaria sendo negociada a privatização para um resort ou hotel.

O Hospital Colônia Itapuã foi aberto em 1940 para isolar pessoas atingidas pela hanseníase e funcionava como uma cidade com pouco contato com o mundo externo. O local tinha seu próprio mercado, padaria, delegacia, igreja – cujo prédio é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – e até uma moeda própria. Hoje em dia, a maioria dos moradores são pacientes idosos remanescentes, familiares e alguns pacientes psiquiátricos que foram transferidos do Hospital São Pedro.

Igreja dentro do complexo do hospital, inaugurada em 1948, é tombada pelo IPHAE. | Foto: Prefeitura de Viamão

Leia a carta do Morhan sobre o Hospital Colônia Itapuã:

Carta Aberta do Morhan Porto Alegre e Região Metropolitana

Desde 2016 há no Brasil uma política de governos que tem como objetivo central a destruição do Estado de bem estar social, através da eliminação dos direitos sociais e trabalhistas do povo brasileiro e das políticas garantidoras destes direitos, como por exemplo o acesso à saúde e à educação pública. Este desmonte das políticas públicas é visto com preocupação pelo Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), que luta nacionalmente pelos direitos das pessoas atingidas pela hanseníase. Recentemente, rumores de um possível fechamento do Hospital Colônia Itapuã (HCI), em Viamão, geraram preocupação entre pacientes, familiares, ex-internos, funcionários, ex-funcionários e moradores da comunidade de Itapuã, preocupação que resultou na criação do primeiro núcleo do Morhan no Rio Grande do Sul. O núcleo surge na região metropolitana do Estado justamente pela necessidade imediata de enfrentamento ao desmonte do HCI e da desinstitucionalização dos pacientes, tanto os remanescentes da hanseníase quanto pessoas em sofrimento psíquico e/ou usuários de substâncias químicas atendidos na instituição.

O HCI é patrimônio público estadual, sendo gerido apenas pelo Governo do Estado do RS. Por isso, causa espanto ao Movimento a proposta de compra de vagas em residenciais terapêuticos para os internos do HCI, apresentada através de Projeto de Lei por iniciativa do prefeito de Viamão, Valdir Bonatto, que acumula também os cargos de secretário da Saúde e secretário da Fazenda. Tal projeto se antecipa a qualquer iniciativa do Governo Estadual, que deveria ser o proponente natural deste tipo de discussão, tendo em vista que não há oficialmente nenhum convênio assinado entre o Estado e a Prefeitura de Viamão. Ao contrário, deveria partir do Estado a busca de parceria com o município, visto que este aparelho estatal está no município de Viamão. Portanto, o Executivo Municipal de Viamão não tem nenhuma ingerência sobre o HCI, e o que ele busca no legislativo local é uma autorização para desinstitucionalização dos internos do hospital através de convênio que ainda não existe.

Observa-se ainda que neste projeto não há garantia de permanência dos pacientes, pois tem duração limitada de 60 meses. Ressaltamos que na área do hospital há moradores que residem lá a maior parte de suas vidas, e que têm no HCI, além de seus lares, tratamento contínuo e cuidados de saúde. Esta incerteza sobre o futuro tem causado uma imensa perturbação entre os pacientes e também entre os funcionários. É o caso, por exemplo, de Eva Pereira Nunes, membro do Morhan Metropolitano. Dona Eva, como é mais conhecida, chegou ao HCI de forma compulsória em 1958, aos 12 anos. Até hoje frequenta a instituição e recebe nele todos os seus cuidados de atenção primária à saúde, sendo acompanhada pelos médicos de lá. Assim como dona Eva, diversos pacientes relatam o temor de saírem de lá obrigados para um local ainda desconhecido, sem nenhuma garantia de continuidade de tratamento e de manutenção de suas vidas de forma digna.

Cabe aqui uma pequena retomada histórica a respeito do Hospital Colônia Itapuã: fundado em 1940, o local foi criado para segregar pessoas acometidas por uma doença, numa das políticas de saúde mais violentas de que se tem notícia, visto que o objetivo do isolamento compulsório nunca foi o tratamento dos doentes, e sim uma tentativa de não contaminação do restante da população. Mais uma vez, uma política de Estado, que deveria zelar por seus cidadãos, quer remover essas pessoas de suas casas, desconsiderando seus desejos e suas histórias.


Ressaltamos também que o desenvolvimento daquela região de Itapuã está extremamente ligado à construção do HCI, visto que na época da fundação hospital a localidade era composta basicamente por grandes fazendas. A estrada que até hoje leva ao HCI, por exemplo, é chamada de Frei Pacífico, o primeiro Capelão da Igreja do hospital. Portanto, a comunidade de Itapuã foi se desenvolvendo no entorno do hospital, com a mudança de funcionários e familiares para a localidade. Até hoje boa parte dos moradores da vila de Itapuã tem alguma relação com o HCI. Consideramos que o hospital deve seguir aberto, atendendo à população local, como já ocorreu há alguns anos, quando o Ambulatório funcionava 24h e era de uso de toda a comunidade do entorno, totalizando cerca de sete mil pessoas.

É necessário pensarmos em formas de construir uma nova história para o HCI, que atendam a comunidade e que também busquem a preservação de sua história em reparação à memória sensível de todos os que foram confinados brutalmente pelo Estado. Precisamos pensar, juntamente com os moradores da vila de Itapuã, em projetos que atendam às demandas da comunidade, garantindo o desenvolvimento sociocultural e educacional da região. Projetos que acolham e que também sejam acolhidos por diferentes grupos, gerando empregos, integrando a comunidade e trazendo soluções de desenvolvimento social. Projetos que respeitem a memória dos ex-internos e o modo como essas pessoas criaram suas relações de acolhimento com aquele espaço, com a natureza e com a arquitetura do HCI. Lembramos também que, dentro da área do hospital, há a Igreja Luterana, projetada pelo arquiteto e engenheiro alemão Theo Wiederspahn (também responsável pelo projeto de prédios como o do MARGS, do Memorial do RGS, do Farol Santander, da antiga Cervejaria Bopp, do Edifício Ely e da Casa de Cultura Mário Quintana). Desde 09 de novembro de 2010, a Igreja e suas adjacências, ou seja, todo o seu entorno no perímetro hospitalar, estão tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae).

Considerando os motivos aqui apresentados e as histórias de vida e o direito à memória de cada morador do hospital, de suas famílias e dos servidores estaduais que ali trabalham, o Morhan Metropolitano se coloca contrário a este tipo de projeto de lei que visa desqualificar, interromper ou transferir os serviços realizados pelo HCI. O Morhan tem em seu papel, além de sua luta pela eliminação da hanseníase, o de agir como atravessador de políticas de abertura de possibilidades de reconhecimento, manifestação e representação dos sujeitos que ali estão, e que, mais uma vez, estão sendo negligenciados pelo Estado. A saúde é transversal, portanto ampliar a discussão, além de ser um movimento político, é educativo e se faz necessário para preservação da memória do Hospital Colônia Itapuã.

Declaramos à sociedade Gaúcha, em especial aos viamonenses, que o Núcleo do Morhan Porto Alegre e Região Metropolitana, em conjunto com os usuários moradores do HCI e comunidade de Itapuã, está na luta pela preservação do Hospital Colônia Itapuã, bem como pela garantia dos direitos humanos e sociais de quem lá reside e trabalha. O respeito aos moradores do HCI é primordial para o futuro de todos. O Estado tem uma dívida histórica com estas pessoas, e é dever dele garantir a proteção dos direitos de quem já sofreu tanto com políticas impositivas e violentas – e que agora está sendo novamente ameaçado por quem deveria zelar pelo seu bem-estar.

Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Preserva HCI!

Viamão, 08 de setembro de 2021.
Morhan Porto Alegre e Região Metropolitana