Por Luciana Genro
A tragédia sanitária, política e econômica que vivemos não cabe em um artigo. Mais de um milhão de doentes e mais de 50 mil pessoas mortas, 5 milhões de postos de trabalho já foram fechados, e quase um milhão a mais de pessoas na fila por um emprego no espaço de 3 meses, chegando a quase 13 milhões de desempregados e 5 milhões em desalento. Diante disso, o presidente da República, depois de sucessivas ameaças autoritárias, faz uma live para defender seu amigo Queiroz, elo de ligação de sua família com a corrupção, com as milícias e com os assassinos de Marielle.
A pandemia desnudou o governo mais obscurantista do planeta. Mas se olharmos um pouco mais à distância vamos ver que a pandemia desnuda também um sistema econômico perverso, cuja crise já vinha empobrecendo a maioria do povo em benefício daqueles 1% que vão muito bem, obrigada. Mesmo os governantes que não vivem nas trevas como Bolsonaro, a exemplo de Eduardo Leite aqui no Rio Grande do Sul, insistem em “abrir” a economia a todo custo, inventando bandeiras e critérios que só servem para mandar os mais pobres voltar ao trabalho enquanto os mais bem situados na pirâmide social podem fazer “home office”. Vivemos em um sistema no qual o trabalhador não pode parar, pois é ele que valoriza o capital, é ele quem garante que os lucros sigam sendo extraídos, mesmo que ao custo da sua saúde. O discurso dos governantes é que enquanto houver UTIs disponíveis a máquina do trabalho precisa continuar. Que morram muitos, que morram os mais frágeis, não importa.
A ajuda financeira que deveria chegar para que os mais precarizados pudessem ficar em casa, ou o crédito para que as pequenas e médias empresas pudessem aguentar fechadas, quando chega, é insuficiente. O grande capital se aproveita desta base social que não pode fazer isolamento social, pois morreria de fome, para garantir a continuidade dos seus lucros. O fantasma do desemprego ronda e assusta quem ainda tem o “privilégio da servidão” como definiu o sociólogo Ricardo Antunes.
Quem está empregado em um setor que segue aberto não tem escolha, tem que trabalhar. Neste cenário, muitas mulheres, especialmente as mães, serão as primeiras a perder o emprego. As mulheres, principalmente as negras, já são as mais precarizadas e as mais mal pagas. Agora, com filhos em casa sem poder ir à escola, o problema se agrava. Quando inventam as suas bandeiras para atender às pressões dos diferentes setores econômicos, nem passa pela cabeça dos governantes que alguém vai ter que cuidar das crianças. Afinal, eles são homens, e filhos é um assunto de mulher.
Quem vai fazer o trabalho extra não pago, cuidar dos filhos que não podem ir à escola e da alimentação da família que está toda em casa? Ora, quem sempre fez. Esse enorme subsídio à economia que é o trabalho doméstico não pago feito majoritariamente pelas mulheres fica mais visível e também mais pesado durante a pandemia.
Mas o problema não se restringe ao período da pandemia. A crise econômica vai seguir, o desemprego vai continuar subindo, assim como a precarização e a “uberização” do trabalho. As mulheres são e serão as mais atingidas. O aumento da violência doméstica já foi identificado durante a pandemia. E vai seguir alta quanto mais mulheres perderem a sua quase sempre precária independência financeira.
Este olhar feminista sobre as consequências da pandemia é fundamental para que possamos pensar medidas imediatas e também estruturais. Do ponto de vista imediato, campanhas para que as mulheres denunciem a violência doméstica são importantes, a mais recente delas incluindo as farmácias e o código “máscara roxa” para fazer o pedido de socorro. Mas de pouco adianta estimular a denúncia se o poder público não ajuda a construir uma saída. A garantia de um abrigo temporário, por exemplo, é fundamental para que uma mulher se anime a denunciar um agressor. Mas nenhuma política de ampliação destes lugares foi implementada. Nem mesmo a emenda que destinei a esta rubrica o governo do Estado executou até agora. Uma politica que garanta o emprego das mulheres que não podem voltar ao trabalho por causa das crianças em casa também nem passa pela cabeça de Eduardo Leite, muito embora eu tenha lhe feito uma sugestão pessoalmente (na verdade virtualmente, em uma reunião com os deputados) de que incluísse este tópico no acordo com o setores econômicos que seriam autorizados a funcionar.
Do ponto de vista estrutural precisamos derrubar este modelo de família patriarcal, machista e LGBTfóbico, assim como precisamos derrubar este sistema econômico no qual o trabalhador e a trabalhadora são peças fundamentais para a acumulação de riqueza de poucos, ao ponto de não poderem parar de trabalhar nem mesmo para preservar a sua vida. Esta não é uma tarefa para hoje, mas não pode sair do nosso horizonte.