Uma juíza, uma advogada, uma defensora pública, uma delegada e uma pesquisadora. Essa foi a composição da mesa que debateu na segunda-feira, dia 18, em Porto Alegre, a construção de uma cultura da paz e uma nova política de segurança pública.
O evento, organizado pela Emancipa Mulher, ocorreu na Câmara Municipal e foi transmitido ao vivo pelo Facebook. A atividade foi mediada pela advogada especialista em Direito Penal e mestre em Direito, Luciana Genro, e contou com a presença da juíza Sonáli Zluhan, da Vara de Execuções Criminais, da defensora pública Tatiana Boeira, da titular da Delegacia da Mulher de Viamão, Jeiselaure Souza, e da doutora em Ciências Criminais, Christiane Freire. Luciana abriu os trabalhos lembrando que no início deste ano, em parceria com o vereador Roberto Robaina, o Emancipa já havia promovido um importante debate sobre a situação da segurança pública com a presença do juiz da Vara de Execuções Criminais de Manaus, Luís Carlos Valois, e com o juiz da VEC de Porto Alegre, Sidinei Brzuska.
A proposta era que as mulheres tomassem a palavra no debate sobre segurança pública com protagonismo. “Geralmente mesas só com mulheres acontecem apenas para debater questões de gênero, o que é muito necessário. Mas nós queremos mostrar que as mulheres podem liderar debates sobre questões políticas gerais, inclusive na área da segurança pública, que costuma ser bem masculina”, disse Luciana, ex-deputada e presidente da ONG Emancipa – Educação Popular.
Os presídios como Estado de exceção
A juíza Sonáli Zluhan é responsável pela fiscalização da execução das penas na Cadeia Pública de Porto Alegre – nome dado ao Presídio Central. Num desabafo, a magistrada confessou que opera na ilegalidade. “Se eu exigir o cumprimento da lei de execuções penais, vou ter que fechar todos os presídios sob a minha jurisdição. Eu trabalho na ilegalidade, porque não consigo fazer cumprir a lei. Quem conhece a lei de execuções penais sabe que não se cumpre nada em relação aos presos. Cumpre-se a lei na hora de condenar, mas na hora em que os presos estão cumprindo a pena, não se quer saber de mais nada”, lamentou.
Sonáli falou sobre as péssimas condições do Presídio Central, que está superlotado – conta com 5 mil presos e tem capacidade para 1,4 mil vagas. “O muro alto dos presídios não existe apenas para que os detentos não saiam, mas também para que a gente não veja todo o tipo de arbitrariedade que ocorre lá dentro. É um sistema comparado à Idade Média, aos tempos em que prendíamos pessoas em masmorras e torturávamos”, comentou, enfatizando que os presos são condenados não apenas a cumprir penas, mas também a se filiar em alguma facção.
O último relatório do Infopen revelou que o Brasil já ultrapassou a Rússia e possui a terceira população carcerária do mundo, com 726 mil presos. Cerca de 40% deles sequer foram condenados. A imensa maioria é negra, pobre e com ensino fundamental incompleto. E o déficit de vagas só aumenta. Enquanto a população carcerária aumentou em 28.094 presos no primeiro semestre de 2016, os presídios registraram uma queda de 3.152 vagas.
A defensora pública Tatiana Boeira considera que “há uma banalização das prisões cautelares” no Brasil e afirma que os juízes, muitas vezes, optam pelo encarceramento provisório em resposta a uma pressão da mídia e a um clamor popular punitivista.
“Temos pessoas presas há cinco anos provisoriamente. Tu podes impetrar habeas corpus, entrar com pedidos nos tribunais em Brasília, e eles vão seguir presos preventivamente, aguardando um julgamento em que, às vezes, são absolvidos. Ao ficar tanto tempo aguardando o nosso sistema funcionar, acabam entrando para uma facção e adquirindo dívidas com elas”, explicou.
Encarceramento não reduz a violência
Doutora em Ciências Criminais e pesquisadora da área da segurança pública, Christiane Freire trouxe para a mesa as elaborações que a academia vem produzindo acerca do tema. Ela contesta a discurso de que haja impunidade no Brasil.
“A nova racionalidade penal diz que existe impunidade no país. Na verdade existe impunidade com um recorte bem específico, que tem a ver com a tipologia criminal e com quem praticou o crime”, analisou.
Ela ressalta que há uma relação direta entre o encarceramento em massa no Brasil e os índices de violência, contrariando a visão comum de que mais prisões significariam mais segurança nas ruas. “O aumento do encarceramento não reduz a criminalidade. Não é uma afirmação ideológica, é algo objetivo, racional e matemático. O aumento da criminalidade violenta no Brasil não sofre nenhum impacto com o aumento do encarceramento. Quem alimenta as organizações criminosas no Brasil é justamente o grande encarceramento”, pontuou.
Para Christiane, que é pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Criminal (GPESC) na PUC-RS, é preocupante o papel da militarização na segurança pública. “Podemos verificar isso na criminalização dos movimentos sociais e nas grandes operações dentro das comunidades com o Exército. Ninguém ouve falar do ministro da Justiça, quem dá o tom da segurança pública é o Exército e o Ministério da Defesa”, critica.
Mediação de conflitos e políticas preventivas
A delegada Jeiselaure Souza, titular da Delegacia da Mulher de Viamão, considera que a segurança pública só poderá avançar a partir de um trabalho integrado entre todas as instituições. Ela discorda da noção de que este seria apenas um problema da polícia. “Temos que desmistificar essa cultura de que segurança pública é um problema da polícia. A polícia deveria ser o último meio para garantir segurança”, ponderou.
Jeiselaure criticou o número excessivo de presos detidos em delegacias no Rio Grande do Sul – segundo ela, uma “bomba prestes a explodir”, pois coloca em risco os policiais, as pessoas que buscam atendimento nas unidades e os próprios detentos, mantidos em locais sem condições adequadas ao encarceramento.
Para a delegada, é preciso apostar em programas de prevenção à violência e no diálogo com as comunidades. Ela citou o exemplo do projeto “Papo de Responsa”, em que a Polícia Civil conversa com alunos nas escolas sobre temas como drogas, bullying e violência doméstica. E também falou sobre o programa “Mediar”, em que a entidade atua diretamente na mediação de conflitos, reduzindo índices de reincidência e desafogando a demanda do Poder Judiciário.
Jeiselaure também comentou sobre sua área de atuação, apontando a necessidade de se tratar os agressores de mulheres. “Não podemos pensar em acolher as mulher vítimas de violência sem também tratar os agressores. Se não fizermos isso, eles certamente irão reproduzir esse comportamento com outras vítimas e gerar um novo ciclo de violência”, expressou.
A guerra às drogas precisa acabar
A política de guerra às drogas foi apontada por Luciana Genro como uma das principais causas para o encarceramento em massa de jovens pobres e negros no Brasil. De fato, os dados do Infopen demonstram que a maioria dos presos (28%) está detida por tráfico de drogas.
Para a ex-deputada, é preciso modificar a lei de drogas, que não estipula uma quantidade de substâncias ilícitas a ser definida como utilização para consumo ou para tráfico, e descriminalizar a maconha, regulamentando seu uso e tratando a dependência química como questão de saúde pública.
“Enquanto não repensarmos a política de tratamento à droga, não só no Brasil, mas no mundo, não vamos conseguir ir ao cerne do problema da violência e da superpopulação carcerária. O Uruguai tomou uma medida muito importante, que foi a descriminalização da maconha. O fato é que os índices de violência e encarceramento estão ligados a essa política repressiva às drogas”, concluiu.
A defensora pública Tatiana Boeira também considera que é preciso uma mudança de paradigma. “O tráfico hoje é uma empresa. O grande traficante é um empresário feroz, que tem a seu serviço uma classe trabalhadora que se mata por um espaço extremamente rentável”, comentou.
Já a delegada Jeiselaure Souza apontou a necessidade de se fortalecer a investigação dos crimes de lavagem de dinheiro, agindo sobre os bens dos grandes traficantes. “Temos que atacar o patrimônio das pessoas que estão no comando das facções e repensar a política de drogas. Punir e prender usuários de drogas não enfrenta o problema.”
O vereador Roberto Robaina (PSOL), que também esteve presente, defendeu a necessidade de mudanças estruturais, com a criação de de políticas públicas que ofereçam alternativas à juventude marginalizada. “Os presos têm classe, cor e também moradia. A lógica da militarização das favelas expressa isso. É no Rio que esta lógica está mais avançada. Por isso precisamos elaborar uma política que ofereça uma alternativa.”