Artigo da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, originalmente publicado no site da Folha de São Paulo nesta quarta-feira (01/06).
Daqui a quatro meses teremos eleições municipais no Brasil. Mas como os dramas e as incertezas do cenário político nacional têm ocupado 100% do debate público, as questões locais até agora não ganharam espaço. O que podemos esperar, então, dessas eleições?
Se nos pautarmos pelas narrativas presentes nas ações jurídicas e midiáticas, assim como no discurso das novas/velhas lideranças políticas envolvidas no processo de impedimento da presidente afastada Dilma Rousseff, certamente os candidatos aos governos municipais prometerão “honestidade” e “responsabilidade em relação aos gastos públicos”. Entretanto, para que conquistem os eleitores, estas promessas enfrentam dois problemas.
O primeiro é que, na atual conjuntura –na qual muitos dos que clamam contra a corrupção aparecem em denúncias que os envolvem em escândalos–, não está mais tão fácil convencer os eleitores da sinceridade dessas promessas. O segundo é talvez a grande incógnita desta eleição municipal: as pautas e demandas em torno do direito à cidade que emergiram nos últimos anos e que se encontraram nas ruas em 2013 serão capazes de penetrar no debate eleitoral? Refiro-me às mobilizações em torno do transporte coletivo de qualidade e acessível, do acesso à água e a outros bens comuns, como as escolas e os espaços públicos da cidade.
Parece-me que no centro da questão –e destas lutas– está o tema do processo decisório sobre as políticas públicas. As tradicionais formas de representação política estão claramente em crise… E não apenas no Brasil, mas em vários lugares do mundo, como na Espanha, onde estive recentemente. Ali emergiram, a partir de movimentos como o 15M e o Indignados, novas agremiações políticas que, no processo de disputa das eleições locais, colocaram no centro de seus programas a proposta do exercício da democracia direta, experimentado por estes novos grupos em seus espaços de organização e mobilização: as ocupações.
Em nosso país, 40 anos atrás, quando o sistema político que sustentava a ditadura militar estava em crise, um importante componente da luta pela redemocratização foi a aposta na “democracia direta local”. Assim, em várias cidades, como, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e Diadema, ao longo dos anos 1990 ocorreram experimentações importantes de democratização dos processos decisórios. Orçamentos participativos, conselhos e conferências, com a participação direta de cidadãos eleitos em processos independentes e paralelos ao processo de representação eleitoral mediado por partidos políticos, eram apostas que buscavam promover na lógica fechada da política como negócio um giro em direção à democracia direta.
Embora tenham trazido inovações e experimentações, infelizmente, esses processos não foram capazes de romper a lógica predominante no modelo de tomada de decisões, tendo sido inclusive muitas vezes engolidos por ela.
Hoje, entretanto, estamos vendo surgir no Brasil, entre os chamados novos movimentos sociais pelo direito à cidade, um novo ciclo de experimentação com relação às formas de tomada de decisão, que incluem processos mais horizontais e diretos, com ampla atuação presencial, mas também por meio de redes sociais e ferramentas tecnopolíticas, e que hoje não apenas reivindicam mais espaço nas decisões, mas também instituem práticas de autogestão nos espaços que ocupam.
Em Madrid, Barcelona e outras cidades da Espanha, um dos eixos centrais dos governos municipais recém-eleitos a partir de organizações desse tipo, em um movimento autodenominado “municipalismo”, é justamente a abertura de espaços para estratégias e formas de participação que incorporem a potência dessas novas organizações e, sobretudo, suas práticas.
Acredito que candidaturas para as prefeituras de nossas cidades que queiram de fato construir alternativas que convençam os cidadãos de que seu discurso não se trata de blá blá blá terão que, desde já, na campanha, entrar em sintonia com esta nova noção de construção da cidade como bem comum, com a qual o mundo da política terá que em algum momento dialogar.