*Artigo do deputado estadual do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo (PSOL), publicado originalmente no site da Folha de São Paulo, nesta terça-feira (26/01).
Um dos muitos motivos para a crise e o esgotamento da política de pacificação no Rio de Janeiro é a mistura entre oportunismo eleitoral e empreitada colonizadora.
Quando aportaram em terras brasílicas, os portugueses chamavam de sertões os territórios hostis e habitados por povos considerados bárbaros. Não há consenso sobre a etimologia da palavra, mas parte dos filólogos defende que deriva do latim: “desertus”.
O sertão seria um grande deserto, “desertão”. Lugar cuja escassez não se resume à adversidade do ecossistema. Sob o olhar do colonizador, o sertão é marcado por outro tipo de ausência: humanidade. Aos cristãos, arautos da civilização, caberia conquistar e domesticar esses povos.
A política de pacificação trata as favelas como novos sertões. Não à toa, o discurso oficial é o da conquista do território. Em vez de erguer uma igreja e um forte, como os colonizadores, hasteia-se a bandeira, canta-se o hino nacional e constrói-se um teleférico.
Dessa concepção vertical, impositiva nasce o autoritarismo que levou a política de segurança à falência. Os representantes do poder público não escutam os moradores das favelas porque não os reconhecem como iguais. São seres pré-civilização.
O caráter de bandeira militarista torna impossível a existência do policiamento comunitário e o respeito à autonomia das pessoas. Não existe, por exemplo, ouvidorias eficientes e canais de diálogo.
A redução institucional do Estado à presença do comandante militar faz nascer a figura do xerife, responsável por manter a ordem e gerir as terras bárbaras. Por tudo isso, vemos a multiplicação dos conflitos, dos Amarildos torturados e desaparecidos e dos assassinatos de policiais devido à falta de condições adequadas de trabalho.
A tragédia se anunciava na expansão desenfreada do projeto, motivada por cálculos eleitorais. Novas unidades foram instaladas sem qualquer avaliação responsável sobre experiências anteriores.
Não houve preocupação real em modificar a formação policial. A cultura militarista da PM não condiz com as exigências do policiamento de proximidade. Ela é preparada para a guerra, não para escutar, dialogar e buscar soluções pacíficas para conflitos cotidianos.
Os novos sertanistas sabem que o medo é capital político. Especulam com ele no mercado eleitoral e vendem ilusões, miragens salvacionistas que dividiram as cidades em civilização e sertões, desertos de direitos. A crise é filha do oportunismo.
As favelas não precisam ser conquistadas nem domesticadas, mas tratadas como espaços constituídos das cidades, onde exista policiamento, mas também escolas, postos de saúde e creches. Dignidade não pode ter CEP.