Rentistas e defensores da produção travam luta no governo Dilma, diz filósofo do direito
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
As políticas são capturadas pelos interesses financeiros e especulativos. Eventuais abalos contra o paraíso das finanças são superficiais. No Brasil, defensores do rentismo prática de viver de rendimentos e de uma política em favor da produção se digladiam no governo.
As avaliações são do filósofo do direito Alysson Leandro Mascaro, 37, professor da USP e do Mackenzie que está lançando o livro Estado e Forma Política.
Elogiado pelo filósofo Slavoj iek, Mascaro analisa a relação entre política e economia. Leia entrevista.
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Folha – O sr. escreve que o poder do capital cresce e se renova com as crises. Isso está ocorrendo agora? Como esse fenômeno pode ser identificado no mundo?
Alysson Leandro Mascaro – Há quem tenha esperança na crise. Não é meu caso. A visão tradicionalmente estabelecida sobre as crises no capitalismo costuma presumir que, a esses momentos extremos, corresponda uma alteração substancial nos padrões de ação econômica, política e social.
Minha insistência, em “Estado e Forma Política”, é justamente a de alcançar as formas sociais, que são o núcleo da sociabilidade na reprodução capitalista, para, a partir daí, entender que as crises, no molde pelo qual se apresentam na atualidade, têm servido apenas para um rearranjo das mesmas formas, sem superá-las.
Um mundo da mercadoria e da valorização do valor é ainda o horizonte político que resulta da crise. De algum modo, o capital se revigora quando abalado neste contexto presente.
Em que direção ocorrem as mudanças no capitalismo de hoje? Há uma concentração maior?
O capitalismo neoliberal marcha para tentar abolir suas eventuais contratendências. É impossível que essa marcha seja plena, embora seja sempre almejada.
A tendência à concentração do capital é abalada, historicamente, com grandes intervenções de luta social e política em sentido contrário e com eventuais demandas surgidas das crises. Mas no caso da economia capitalista atual, neoliberal, são difíceis os casos de oposição sistemática. Os Estados se associam de modo deliberado e declarado à dinâmica da concentração do capital.
É verdade que tal tendência tem matizes: uma grande variabilidade de conflitos e arranjos específicos internos e, ainda, uma geografia econômica mundial relativamente dinâmica.
Mesmo assim, em que pese o fato de que novos países e grupos passem a ganhar poder relativo, pelo plano geral das sociedades capitalistas contemporâneas está em causa um processo de unificação de práticas e interesses, em favor da concentração econômica: são as mesmas maneiras de administrar, de pensar, de valorar, de agir politicamente, que se esparramam mundialmente sobre velhas e novas relações, todas capitalistas.
O sr. analisa as relações entre capitalismo e democracia. Como a atual crise afeta as democracias no globo? Quais são os exemplos?
A crise está no centro do capitalismo e, justamente aí, é onde se costuma identificar a residência da democracia. São círculos concêntricos. Mas, se for o caso, um círculo suprime o outro: a crise mata a democracia. Do modo pelo qual se estabeleceram em toda a Idade Contemporânea, as formas da democracia são, íntima e conexamente, formas da reprodução capitalista.
Ocorre que é preciso investigar mais a fundo o que estrutura a democracia no capitalismo: ela está associada menos a procedimentos eleitorais e, mais, à garantia da propriedade privada, de sua circulação e, ainda, a uma subjetividade jurídica generalizada. Quando as crises do capitalismo, como a atual, fragilizam a democracia, isto pode revelar até o abandono da democracia eleitoral, mas não da sustentação política e jurídica ao capital.
A dinâmica do capitalismo faz com que a garantia seja à propriedade privada e à exploração do trabalho assalariado, não necessariamente a mandatos e a governos representativos ou à voz do povo. A atual crise do capital, mais uma vez e como todas as demais, incomoda a democracia. Basta o exemplo europeu: aos gregos e aos países mediterrâneos endividados, está impedida, na prática, a deliberação popular sobre o pagamento ou não das dívidas, em razão de um terrorismo econômico.
Claro que, no decorrer da história e no presente, os graus dessa variação do capitalismo contra a democracia são amplos. Mas as modalidades ditatoriais ou fascistas são sempre os limites extremos da sociabilidade capitalista, já testados de sobra no século 20.
Como o sr. avalia o modelo chinês e seu futuro?
Em qualquer tipo de sociedade capitalista, Estado e política têm formas e estruturas necessárias. Inserida em tal dinâmica, a atual China se estabelece a partir das mesmas formas gerais capitalistas mundiais. A busca da valorização e a garantia ao capital são seus corolários.
Assim, não se pode pensar que o modelo chinês seja o outro ou o oposto de um modelo capitalista ocidental. Suas diferenças são, justamente, suas complementaridades em face do mundo. O interesse chinês é, ao seu modo, o de manutenção da reprodução capitalista geral, e dos EUA, de quem é credor, em específico.
O modelo chinês só poderia representar novidade num plano menor: se, nos engastes da política, excepcionalmente, a China viesse a influir para uma política menos neoliberal no mundo. Mas, mergulhada no processo de valorização do valor em plano mundial, ela não pode ser distinta estruturalmente do que é, a não ser com uma alta reconfiguração de suas próprias bases.
O sr. descreve a ascensão do neoliberalismo e afirma que nesse modelo a política dos capitais passa pelos Estados. Como isso pode ser identificado no Brasil de hoje?
Como se costuma traçar a identificação política dos tempos neoliberais? O discurso corrente a esse respeito opõe binariamente mais Estado no passado a menos Estado hoje.
Proponho que seja entendida de outro modo a articulação entre neoliberalismo e Estado. Desde a década de 1970, mais do que se afastarem da economia, os Estados na verdade se reconfiguram, mantendo papel ativo, ainda que de outro tipo, pós-fordista neoliberal. Ao lado do papel preponderante nas privatizações e na diminuição de direitos sociais, novos problemas e demandas estatais se apresentam.
As cruentas políticas de segurança pública contra os pobres e miseráveis e a guerra contra o terrorismo são os exemplos notáveis de que o Estado se reconfigura e continua exercendo papel fundamental na política exploratória do capital. Não é possível que haja ilusão: o intervencionismo estatal no bem-estar social do pós-Segunda Guerra e o neoliberalismo são variações –ainda que extremas e altamente conflituosas entre si– dentro das mesmas formas sociais, do capitalismo.
Não quero dizer, com isso, que sejam equivalentes –pelo contrário, são opostos– mas, de todo o modo, não há neoliberalismo, por mais extremado que seja, que prescinda do Estado. Na boca dos defensores do capitalismo, o discurso de menos Estado ou do seu fim é uma contradição em termos.
O Brasil atualmente tem uma política neoliberal?
Tanto o neoliberalismo quanto o pós-fordismo não são modelos totalmente afirmativos, que se apresentem de modo puro dentro do capitalismo. Eles se estabelecem a partir de novos e velhos elementos econômicos, políticos, sociais e culturais, sempre em rearranjo.
Daí que não há nenhuma fase neoliberal que supere totalmente o bem-estar e o intervencionismo anteriores quanto, por via reversa, também não há, nas tentativas políticas de esquerda do mundo na atualidade, superação plena do neoliberalismo. É verdade que, no plano mundial, o meio do pêndulo tem sido arraigadamente neoliberal e, estruturado num sistema internacional, virtualmente nenhum país escapa ou se imuniza em relação a ele.
No Brasil e no mundo, quando raras políticas tateiam a superação dos períodos plenamente neoliberais das décadas de 1990 e 2000, isto se faz contra uma base que impele ao contrário.
Se é verdade que nos últimos anos algumas bússolas políticas já mudaram no Brasil e em alguns países do mundo, a margem que resta para que se possa declarar superada a política neoliberal ainda é muito grande.
Quais interesses capturam o atual Estado brasileiro? Por quê?
Para a compreensão da política, em “Estado e Forma Política” estabeleço uma junção necessária entre as formas gerais do capitalismo –como a estatal e a jurídica– e as lutas de classes e os conflitos de grupos. Daí resulta uma estruturação política dos interesses que é variada e contraditória.
O Estado quase sempre se polariza a partir das classes e grupos dominantes e hegemônicos, exercendo alguma espécie de coesão geral, o que leva a concessões. No caso do Brasil, tem-se continuamente, nas últimas décadas, um deslocamento do eixo da decisão política para os capitais internacionais, preponderantemente financeiros.
Tal movimento encontra algumas poucas oposições e contratendências -vistas em especial apenas nos últimos anos- de fortalecimento do poder do Estado e do capital nacional. E no contexto da reprodução capitalista, até os interesses devem ser problematizados.
Pavimentando as contradições e os múltiplos conflitos sociais, os interesses do núcleo econômico e da dominação política estão solidamente assentados em bases culturais e ideológicas que lhes anunciam como única possibilidade de ação na sociedade, dando-lhes conforto nos embates contra os críticos e os explorados do mundo.
Quais são as contradições desse modelo no Brasil de hoje?
Toda e qualquer reprodução capitalista é crise: estabelece-se a partir da exploração, da apropriação desigual do capital e dos conflitos variados que são inexoráveis a uma sociedade de agentes múltiplos e concorrentes entre si, nacional e internacionalmente.
Não há possibilidade de estabilidade geral dentro do capitalismo, o que não quer dizer que suas fases e arranjos sejam todos iguais. Tanto no Brasil quanto no exterior, as mesmas dinâmicas gerais de conflito e contradição se mantêm vivas e atuantes. Persevera a disputa entre as frações do capital próximas das finanças e da especulação e aquelas outras dadas à produção e ao consumo de massas, com vantagem clara, nas últimas décadas, para os interesses financeiros.
Como resultado, o Brasil e os demais Estados variam entre aqueles mais reféns dos capitais especulativos ou aqueles mais próximos da indução da produção e da circulação econômica. Além de tais contradições gerais, no Brasil e no mundo há ainda uma miríade de outras contradições específicas: lutas sociais, políticas, ideológicas, culturais e morais que, ao seu modo, se aglutinam, de modo muito variado, às dinâmicas gerais do capital.
Alguns setores têm criticado o que consideram a excessiva presença do Estado na economia no Brasil atualmente. O sr. concorda com essa análise? Quais interesses ela expressa?
O capitalismo é sempre crise, mas o neoliberalismo é a crise do capital exposta a partir de uma de suas mais aberrantes faces. Desde 2008, no mundo todo, não há mais possibilidade de negar tal constatação.
De lá para cá, a eventual insistência de alguns setores econômicos, políticos e intelectuais em pautas neoliberais só se deve, então, a um jogo de poder do capital especulativo mundial, cuja resiliência resta patente e escancarada, ainda que, peculiarmente, não fique clara aos seus próprios arautos, que persistem em se iludir, chamando à sua perspectiva ideológica de ciência econômica.
De outro lado, outros setores reivindicam justamente uma presença maior do Estado, criticando a política de concessões, privatização da saúde e do ensino. Como o sr. avalia esse processo?
É uma tendência natural que, em face das políticas de regressão neoliberais, a política progressista se assuma como resistência. O combate à exploração costuma ser estabelecido a partir dos horizontes intelectivos da própria reprodução social já dada.
Nesse plano, as lutas sociais, em tempos de aprofundamento da exploração no plano mundial, agarram-se ao intervencionismo estatal e ao bem-estar social como suas armas primeiras. No que tange ao jogo imediato, então, trata-se da escolha entre capitalismo desenfreado e capitalismo regulado.
É verdade que essa diferença política separa e dá clareza às posições da hora presente. É preciso tomar partido nessa diferença. Mas, acima de tudo, é preciso abrir brechas nos tempos históricos para conseguir a proeza de vislumbrar e ensejar a própria transformação do capitalismo, com novas formas de sociabilidade.
Há quem diga que o governo brasileiro continua atuando em favor dos rentistas. O sr. concorda?
Todas as políticas, sob as formas capitalistas, são a favor do capital. Claro está que o capitalismo tem lutas internas, frações em disputa, contradições entre classes, nações, grupos e indivíduos. Assim, as políticas são capturadas pelos interesses mais fortes e pronunciados, que contemporaneamente são os financeiros e especulativos.
No Brasil e no mundo, os eventuais abalos contra o paraíso das finanças são perfunctórios, com altos custos políticos aos governos que os tentam. Mas é preciso sempre reafirmar que, no plano da disputa imediata, uma política em prol da produção e em desfavor do rentismo é altamente preferível e desejável. Este é um dos termômetros mais importantes da política nos nossos tempos, e tal jogo está sendo jogado atualmente pelo governo Dilma e pelo capital financeiro. A história projetará suas possibilidades, seu resultado e sua verdade.
Quem está ganhando essa disputa entre rentismo e produção no governo Dilma?
No Brasil, o padrão econômico sobrepujadamente rentista não é recente: tem uma história já de décadas. Pode-se afirmar, no entanto, que, no governo Dilma, o seu poder relativo certamente teve alguma diminuição, em especial pela diminuição das taxas de juros oficiais.
Ocorre que só se poderá asseverar a constância de um novo padrão de regulação a partir de uma estabilização mais duradoura. Os próximos anos é que confirmarão tal estabilidade. Mas, mesmo que essa nova fase de regulação produtiva venha a se firmar, ela não se dará como uma vitória majoritária contra o mundo das finanças.
Em toda a história recente das economias capitalistas, um maior poder regulador da produção revela-se, no máximo, como um predomínio relativo: é o mundo rentista que tem estruturado as grandes estratégias do capitalismo. Mas é aí que se verificam os atritos econômicos mais nevrálgicos do momento. As grandes lutas entre os interesses das variadas frações do capital estão em operação, ainda que quase ocultamente, nas disputas internas do governo Dilma.
Há luta de classes dentro do governo Dilma?
Como há em todos os governos do mundo. Os Estados capitalistas têm por característica o seu assentamento tanto em formas necessárias quanto em ações sociais contraditórias.
Frações do capital e grupos sociais orbitam pelo Estado, disputando poder. As dinâmicas do capital são sempre variadas, porque assentadas em muitas classes, grupos e múltiplas lutas, em geral realizando amálgamas e tentando operar alguma neutralização dessas mesmas contradições.
Nessa busca de média, típica dos nossos tempos, o que define os governos, então, é a eventual polarização dentro do próprio amálgama: a favor de qual parcela do capital, se nacionalista ou não, se a favor dos movimentos sociais e de quais deles.
Mas é preciso separar a análise das lutas de nosso tempo em dois planos. É verdade que o presente se mede a partir de um falso apaziguamento das contradições e, dentro desse contexto, pelas eventuais torções e inclinações internas. Mas, no longo prazo, a política do mundo capitalista em crise será julgada pela sua capacidade ou não de superar as próprias formas do capitalismo.
Por que o sr. escreveu esse livro?
Nas últimas décadas, o capitalismo deleitou-se com os louros de um mundo acuado e desesperançado, no qual os aplausos vieram tanto dos exploradores glorificados quanto dos explorados fragilizados.
Pensar a crítica e a superação tem sido tarefa inglória. Até a universidade e a intelectualidade se estabeleceram sobre novos patamares, de horizonte curto e conservador, limitado à ambiência do bom-tom acadêmico que reproduz o mundo exatamente como ele está.
Era preciso captar a teoria política crítica no patamar mais alto no qual foi abandonada mundialmente nas últimas décadas, para, a partir dela, avançar. É necessário falar o inesperado e o angustiante num mundo no qual a angústia existe e é cada vez maior, mas não sabe o que falar nem tem voz.
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Estado e forma política
AUTOR – Alysson Leandro Mascaro
EDITORA – Boitempo Editorial
QUANTO – R$ 32 (136 págs.)