Por proposição da deputada Luciana Genro (PSOL), foi lançada na Assembleia Legislativa nesta sexta-feira (28) a Frente Parlamentar em Defesa dos Brigadianos de Nível Médio. Os policiais militares, devido à estrutura da corporação, têm dificuldades em poder expor suas denúncias de forma pública, mas policiais da reserva e advogados denunciaram casos durante o evento, e Luciana Genro também vem recebendo diversas denúncias de forma anônima – desde a legislatura passada até os dias de hoje, a deputada já enviou 84 ofícios ao Comando-Geral da BM referente às denúncias que recebeu dos praças. Esses relatos foram compilados em um dossiê elaborado pelo mandato da deputada e apresentado durante o lançamento..
Ao longo dos últimos anos, Luciana Genro vem dialogando com os brigadianos de nível médio, recebendo relatos via WhatsApp, Instagram, Facebook e em reuniões presenciais. “Eu iniciei esse contato quando o governo enviou o projeto de lei que alterou as carreiras, incluindo as dos BMs. Dificultaram ainda mais as possibilidades de melhoria nas condições salariais. Os capitães ganharam um reajuste bastante substancial, mas os de nível médio foram penalizados, assim como o conjunto de servidores que perderam conquistas”, afirmou a deputada.
Um dos aspectos mais destacados no dossiê e no evento é o alto índice de suicídios e adoecimento mental dos brigadianos de nível médio. “Já tivemos cinco policiais que cometeram suicídio nesses primeiros meses de 2023. Sabemos que o adoecimento mental tem múltiplas causas, mas com certeza há causas dentro da carreira que contribuem enormemente para essa situação tão dramática”, avalia Luciana Genro. Dados da própria Brigada Militar demonstram que foram 49 suicídios de 2018 até 28 de fevereiro de 2023 – mais da metade de todas as mortes de brigadianos no mesmo período.
O suicídio também foi a principal causa de morte de policiais militares no Rio Grande do Sul em 4 dos últimos 5 anos – o único ano que o numero de mortes em confronto superou o de suicídios foi em 2019. E somente nos três primeiros meses de 2023, mais de cinco suicídios já foram notificados. Além disso, de acordo com dados do 1º Censo da Brigada Militar, o uso de medicamentos para doenças psiquiátricas/ psicológicas é o segundo principal, considerando os servidores que utilizam alguma medicação de forma contínua, ficando atrás somente daqueles para pressão alta/ cardíacos.
Representando a ABAMF – Associação que representa os Praças – Potiguara Galvam relatou que a Associação está criando um canal de comunicação com os colegas para que procurem ajuda. “Vamos criar um conselho de representação, em que um brigadiano de cada batalhão irá nos passar o que está ocorrendo, para que possamos buscar soluções o quanto antes”, afirmou.
Relatos de brigadianos
O policial da reserva Ederson Oliveira Rodrigues, da União dos Praças da Brigada Militar e Bombeiros Militares, deu um depoimento emocionado sobre as perseguições que sofreu na corporação. Ele atualmente está afastado e não pretende retornar à BM. “Estar na Brigada sempre foi um sonho pra mim, mas acabou virando um pesadelo”, contou.
Os problemas começaram em 2017, ao ser convocado pelo Ministério Público a testemunhar contra um coronel. Ederson passou a sofrer perseguições dentro do batalhão onde trabalhava, em Pelotas. “Chegou ao ponto em que eu fui trocado de companhia e colocado no presídio como forma de castigo. Eu me lembro que eu estava sentado na guarita e pensei em tirar minha vida. Decidi consultar com um psiquiatra. Quando a gente se afasta, é visto como um mau policial. Eu preferi sair, me afastar, do que continuar naquele ambiente, continuar passando por aquilo”, narrou.
Questões semelhantes foram relatadas pelos demais convidados. Claudete Valau, presidente da Associação das Esposas dos Policiais Militares e Policiais Femininas de Nível Médio do RS, disse conhecer diversos casos. “A nossa associação é de família, com esposas, filhas, viúvas, mães. E muitos casos como esse chegam a nós. Muitas vezes a gente leva pra Brigada, para o Comando, e não tomam atitude. Fora os assédios sexuais das policiais femininas, que elas têm medo de relatar”, disse. O próprio marido dela já sofreu perseguições devido à atuação da Associação, segundo Claudete.
“Esse tema do assédio sexual é muito grave e nós não conseguimos que as mulheres falem. Elas ficam com medo, porque depois quem vai julgar o caso são os próprios oficiais da Brigada. Faltam canais de comunicação adequado para resolver os problemas que surgem dentro da BM”, avaliou Luciana Genro.
Para o advogado Ângelo Curcio, a instalação da Frente Parlamentar é um “divisor de águas entre um passado obscuro de opressão institucional marcado por abusos e assédios e o alvorecer de um futuro de dignidade humana para os brigadianos de nível médio”. Ele apontou que as questões de assédio sexual e moral dentro da corporação são uma chaga secular dentro dos serviços públicos, principalmente da Brigada Militar.
“A morte está sempre presente na vida do policial, que tem na profissão o dia a dia da violência, mas não pode adoecer, porque é considerado fraco. É preciso ampliar o acesso aos tratamentos e acabar com o preconceito. Essa Frente pode ser o caminho para a construção de políticas públicas”, acrescentou o advogado.
O Sargento da reserva João da Cruz também deu seu depoimento relatando as perseguições que sofreu. “Trabalhei cinco meses com 55 horas extras designadas para mim, sem no fim do mês nunca recebê-las. Quando comecei a buscar os meus direitos junto ao Comando, começaram as perseguições. Recolheram meu veículo do pátio do batalhão porque eu estava com IPVA. Não paguei o IPVA porque eu não estava recebendo”, contou.
A advogada Maria Vicência Barbosa, que representa uma brigadiana que tem sofrido perseguição, abordou a situação pela qual sua cliente tem passado. “Mesmo tendo como provar o que ocorreu, estou com uma batalha muito grande. A minha cliente está extremamente fragilizada, com a saúde mental abalada. Ela sofreu intolerância de gênero, racismo, perseguição e assédio moral. E até hoje nada foi feito”, colocou.
Ela leu uma parte do depoimento prestado pela cliente: “Não sei mais para quem preciso contar a minha situação para pedir ajuda. Estão fazendo violência psicológica, sinto que estão fazendo pressão para ver até onde vamos aguentar. Sentimos que não vale de nada todo o esforço para entrar na Corporação e que não somos nada além de um número de matrícula. Já não tenho mais forças para levar mais um dia nessa situação. Não acredito que seja somente um caso isolado”.
O Sargento da Reserva e Psicanalista Marco Antonio Dilly trouxe a sugestão de que a Frente seja feita a nível nacional, diante de diversos problemas também em outros estados. “O policial militar está constantemente em estado de alerta”, colocou sobre a questão da saúde mental. Ele também sugeriu que haja convênios com associações voltadas para a psicanálise para fornecer este tratamento aos brigadianos.
Departamento de Saúde da BM: “ficamos tristes com as denúncias”
O único representantes dos Oficiais que falou durante o lançamento foi o Coronel Regis Reche, diretor do Departamento de Saúde da Brigada Militar. O Comando da corporação não foi convidado neste primeiro momento, pois o objetivo era ouvir os depoimentos dos brigadianos. “Ficamos tristes com as denúncias, todas devem ser apuradas. Não é o que deve ocorrer numa instituição como a Brigada Militar”, colocou o Coronel.
Ele destacou que todas as denúncias devem ser feitas à Corregedoria da BM e abordou as opções de atendimento para a categoria, com psicólogos e psiquiatras, além de um centro biopsicossocial em nove cidades do interior. “A gente é uma instituição que tem que estar sempre forte e à disposição da sociedade, mas temos que estar com saúde. Sem isso, não consegue prestar atendimento com a melhor qualidade. Queremos somar forças e melhorar o atendimento para a família brigadiana”, afirmou.
Luciana Genro: “A família brigadiana tem duas portas de entrada”
Encerrando o evento de lançamento da Frente, Luciana Genro destacou que os policiais precisam ter seus direitos humanos respeitados para que possam também respeitar os da população. “Ao lutar pelos direitos humanos dos policiais, também estamos lutando por toda a sociedade. Esses abusos irão se refletir em violência externa”, ressaltou.
A deputada também mencionou que a lógica da Brigada é a do militarismo, defendendo que as polícias deveriam ser desmilitarizadas. “Eu defendo sim o fim do militarismo, o que não significa ser contra a polícia, muito pelo contrário. Eles precisam estar em uma instituição em que possam lutar por seus direitos”, disse. Este, no entanto, é um tema mais amplo de debate nacional, por isso a parlamentar avalia que é preciso tomar atitudes mais imediatas e locais para resolver os graves problema denunciados pela tropa dentro da BM.
“Temos duas portas de entrada para a BM, a família brigadiana tem duas portas de entrada. A gente pode ter um Oficial, Comandante, que nunca fez policiamento de rua. Essa diferença faz com que existam duas Brigadas. E o abismo salarial é outro elemento que compõe essa divisão. É difícil falar dessa família quando alguns membros ganham a miséria que os Praças recebem”, colocou, destacando que a estrutura propicia o adoecimento mental dos soldados.
“As causas de adoecimento mental são muitas, mas não é casual que a gente tenha um índice maior de suicídios e de afastamento dentro da Brigada. Podemos buscar medidas para mitigar situações de assédio moral, sexual, perseguições, desrespeito. Queremos contribuir com o Comando e o governo para buscar medidas que possam amenizar os problemas”, garantiu. Um dos projetos de lei neste sentido protocolados pela deputada é o que determina o fim da prisão administrativa na BM.