Por solicitação da deputada estadual Luciana Genro (PSOL), a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa realizou nesta quarta-feira (07/12) uma audiência pública para debater a situação da epidemia de HIV/aids no Rio Grande do Sul.
Coordenadora da Frente Parlamentar de Enfrentamento ao HIV/aids, Hepatites Virais, Sífilis e outras ISTs, a deputada lembrou que o estado possui um dos piores cenários epidemiológicos de HIV/aids do Brasil, com índices de detecção da infecção muito superiores à média nacional e maior coeficiente de mortalidade, com a média 1,8 vezes maior que a nacional.
“Não há dúvidas que a epidemia de aids no RS é um grave problema de saúde pública e precisa ser priorizada pelas gestões estadual e municipais. Contudo, precisamos compreender as suas singularidades e que seu enfrentamento exige uma resposta que combine a incorporação de tecnologias de saúde, uma rede de serviços robusta e estruturada, com uma agenda ancorada na garantia dos direitos humanos e comprometida com o enfrentamento das desigualdades sociais, do racismo, do machismo e da lgbtqifobia,” destacou Luciana, ao citar um documento elaborado pela GAPA-RS, uma das ONGs mais antigas de apoio a pessoas vivendo com HIV/aids no estado.
Diante do debatido, a Comissão deverá cobrar que o governo apresente um plano de trabalho para execução das políticas e informe a destinação e origem dos recursos voltados ao HIV/aids para o próximo período, que envolva a saúde, prevenção, atenção e assistência social, já que o nível de precariedade de vida pessoas com HIV influencia diretamente na sua relação com o acesso e a permanência no tratamento.
Um ofício será enviado à prefeitura de Porto Alegre referente à demora para atendimento e fornecimento de medicamentos a pacientes no posto Santa Marta. A partir da audiência, será criado um documento da Frente Parlamentar com as demandas levantadas para enviar à gestão da Secretaria Estadual de Saúde, bem como serão contatados os municípios da Região Metropolitana para a articulação de medidas em comum para combater a epidemia de HIV e aids na região.
No próximo ano será dada continuidade desta Frente Parlamentar, que será reinstalada na próxima legislatura, em fevereiro, tendo como primeira iniciativa um pedido oficial de reunião com a Secretaria Estadual de Saúde para tratar o tema.
Com o título “Aids no RS: como responder a um cenário de epidemia generalizada?”, a audiência pública foi solicitada pelo Fórum de ONGs Aids do RS para marcar o mês de visibilidade à situação das pessoas vivendo com HIV e aids no país, conhecido como Dezembro Vermelho. Participaram entidades de luta em defesa da pauta, integrantes da sociedade civil e representantes dos governos estadual, federal e do município de Porto Alegre.
RS deixa de aplicar recursos federais
Representando a Diretoria do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infeções Sexualmente Transmissíveis (DCCI) do Ministério da Saúde, Léssio Antonio Nascimento Júnior, reafirmou o compromisso em promover políticas públicas no estado que fortaleçam a vigilância, prevenção e controle do HIV aids no estado. Ele chamou a atenção para os mais de R$ 14 milhões repassados ao governo do RS para esta finalidade.
Outra iniciativa importante é a Interfederativa. Foi feito um projeto com o valor de R$ 3 milhões em verbas federais, mas realizado o emprego de somente R$ 1,6 milhão por parte do governo estadual. Léssio disse que, preocupado com o atraso no investimento, o Ministério da Saúde se reuniu com a Secretaria Estadual de Saúde buscando a repactuação de um plano de execução de atividades, para que esse dinheiro seja realmente direcionado para a demanda.
Esses valores poderiam ser utilizados pelas ONGs para desenvolver projetos, por exemplo. Foi o que trouxe Rubens Raffo Pinto, representante Fórum de ONGs Aids RS, que ponderou o quanto é difícil trabalhar quando os recursos financeiros estão cada vez mais escassos.
“Já tivemos a melhor política de combate à aids do mundo e hoje temos apenas um remendo, muitas ONGs não conseguem trabalhar, não conseguem se sustentar para prestar esse serviço, dificultando cada vez mais acesso do paciente a prevenção, autocuidado, exames e medicação,” desabafou.
“Há aproximadamente uma década, o RS tem recebido sistematicamente repasses de recursos federais extras através de cooperação interfederativa, que tem como objetivo potencializar a estratégias desenvolvidas pelo estado. Contudo, os avanços são mínimos e a epidemia segue ‘estabilizada’ em patamares elevadíssimos!” A denúncia foi feita pela deputada Luciana Genro, que assumiu o compromisso de debater com os movimentos sobre emendas do seu mandato, de forma a direcionar verbas para políticas púbicas de atenção e prevenção do HIV.
Marcia Leão, do Fórum de Aids RS, lembrou que em outros tempos as entidades contavam com o repasse de verbas, enquanto sociedade civil, para desempenhar projetos de conscientização e que isso não acontece neste governo.
“A dificuldade que o estado tem de dialogar com a sociedade civil, para além dos espaços oficiais, foi aumentando com o passar dos anos. Falamos aqui de uma política maior de estado que não existe e não enxerga mais a sociedade civil como parceira. Saio daqui com a grande expectativa de consigamos pensar a epidemia por um outro olhar e a gente consiga acolher a sociedade civil e a diversidade que compõe o movimento de luta contra a aids,” disse.
A gravidade da epidemia de HIV/aids no RS
Os dados que constam no Boletim Epidemiológico 2021 de HIV/aids e Sífilis no Rio Grande do Sul são muito preocupantes. O documento traz dados referentes ao ano de 2020, quando foram identificados 2.592 novos casos de HIV e 2.490 casos de aids em nosso estado, com uma taxa de detecção de 21,8 para cada 100 mil habitantes, totalizando 102.292 casos de aids, no período de 1980 a junho de 2020.
Maria Leticia Ikeda, em nome da Secretaria Estadual de Saúde (SES), disse que nos últimos anos foi registrada uma queda nos marcadores e que 8 mil pessoas foram entrevistadas e testadas no estado, de forma a ter um maior conhecimento da epidemia.
“Obviamente a gente reconhece que não é a melhor situação do mundo, nem do Sul e nem do país. Temos evidências, sim, de ser uma epidemia generalizada, mas que se comporta diferente nas diversas regiões do estado,” disse. Ela reafirmou o compromisso da pasta e se comprometeu a dialogar com Márcia Leão para que seja encaminhado um projeto de repasse de verbas às organizações da sociedade civil.
Existe por parte de muitos responsáveis pela saúde pública um sentimento de recusa a aceitar os alarmantes índices de contaminação por HIV Aids e o que eles representam, pontuou Carla Almeida, do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (GAPA), ao apontar o choque dos dados apresentados pela SES e a perspectiva comunitária, o que chamou de análises distintas da situação.
“Afirmo que o estado é negacionista porque assumir que tu vives uma epidemia generalizada é assumir a responsabilidade e o compromisso de construir uma resposta robusta e articulada entre os entes de governo. Além disso, os pactos de verbas de incentivo para o Rio Grande do Sul sempre têm que ser repactuados, porque o estado sequer consegue executar e respeitar o prazo dos planos. Realmente é uma façanha viver com HIV no RS,” salientou.
Helena Cavalcanti Ransolin, do Conselho Estadual de Saúde, destacou que é inadmissível o estado não saber o que fazer com dinheiro e não acionar os municípios e as entidades para colocar em prática políticas públicas em conscientização e prevenção. Encerrou refletindo que se é uma epidemia que tem mais do que 40 anos está comprovado que não está sendo feito um bom trabalho.
Sociedade civil se faz presente na audiência e cobra medidas por parte dos governos
Rodrigo Rosa, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV (RNP+), destaca que a política de desmonte nacional também está aliada à ineficiência da resposta do governo do RS quando temos um cenário de epidemia generalizada, o que considerou preocupante: “Ao passo que muitos morrem, perdem a vida de fato, nós morremos um pouco todos os dias.”
Em nome do Movimento Cidadãs Posithivas, Gina Hermann lembrou da feminização da aids e como as especificidades no tratamento das mulheres que vivem com HIV são negligenciadas pelos serviços de saúde.
Cleonice Araújo, da Rede Nacional de Travestis e Transexuais Vivendo com HIV, propôs uma reflexão sobre a criminalização dos corpos transexuais e travestis, além de chamar a atenção para o que classificou de má gestão, ao citar recursos encaminhados ao estado que não foram repassados para nenhum órgão. “Será que essa gestão atual vai continuar fingindo que não temos epidemia de HIV e de aids?” questionou.
Representando o GAPA, Carlos Duarte elucidou que para enfrentar uma epidemia é preciso trabalhar de forma ordenada e coletiva, em um esforço conjunto do estado, União e municípios. Já Manoela Medeiros, da ONG SOMOS, pontuou que mesmo que não faltem medicamentos, a falta de investimento se reflete na ausência de insumos para campanhas de prevenção.
A assessora da vereadora Laura Sito (PT), Juliana de Souza, e a assessora do deputado estadual Pepe Vargas (PT), Adriani, também participaram da audiência pública.
Denúncia em Porto Alegre
Luciana Genro recebeu uma denúncia referente à situação do atendimento para pessoas vivendo com HIV no posto Santa Marta, em Porto Alegre. A pessoa relatou que foi fazer o primeiro passo do tratamento e agora está há 27 dias aguardando a espera do retorno da infectologia para receber os medicamentos.
Segundo o atendente do posto, isso estaria acontecendo com novos pacientes, e que antes era questão de 2 a 4 dias de espera, mas agora estaria demorando até meses. “É uma situação extremamente grave envolvendo pessoas que precisam iniciar o quanto antes seus tratamentos e ficam em uma situação muito vulnerável a cada dia que passa e ainda não têm seus medicamentos”, cobrou a deputada.
Daila Alena Renck da Silva, da Coordenação Política IST/Aids, Hepatites Viras e Tuberculose do município, admitiu que são enfrentados alguns problemas na atenção primária e que hoje existe, sim, um tempo de espera, bem como o relatado, e isso se deve à necessidade de treinamento das equipes.
Cristina Bettin, também da coordenação, destacou que a grande troca de profissionais das Unidades Básicas de Saúde dificulta ter uma equipe preparada para atender essa população com todas as particularidades necessárias. Disse, ainda, que as unidades precisam evoluir muito no que diz respeito ao acesso dos pacientes a insumos como lubrificantes, por exemplo.