Mães de crianças no espectro autista, pessoas com deficiência, advogados e especialistas da área da saúde discutiram nesta sexta-feira (03/06), em audiência pública proposta pela deputada Luciana Genro (PSOL), os perigos e retrocessos caso seja aprovado o rol taxativo dos planos de saúde. O debate vem sendo realizado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e será julgado no dia 8 de junho. A taxatividade faria com que não fosse mais possível buscar na Justiça o direito a tratamentos e medicamentos que não estejam na lista de cobertura obrigatória pelos planos de saúde, instituída pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
A deputada Luciana Genro, que propôs a audiência pública realizada pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, encaminhou que seja enviado aos desembargadores que julgam processos do tipo no Rio Grande do Sul e aos ministros do STJ as conclusões da audiência, “que deixam muito claro, do ponto de vista médico, jurídico e humano, que o rol taxativo mata”. A parlamentar vem acompanhando a pauta em parceria com a vereadora suplente pelo PSOL Aline Kerber, que preside a Associação Mães e Pais pela Democracia e compõe a luta ao lado de diversas outras mães.
“Agradeço muito à deputada Luciana Genro por ter abraçado essa luta e com tanta rapidez conseguir essa audiência na Comissão de Direitos Humanos. Essa é a luta das nossas vidas, é para garantir saúde e dignidade para nossos filhos e para toda sociedade. Estamos em busca de humanização, de olhar, de cuidado, de amor às diferenças. Não dá pra uma mãe que vê seu filho convulsionar ficar esperando o plano de saúde”, colocou Aline.
Andressa Preuss, da organização Mães Atípicas, destacou que a questão do rol taxativo não é só de interesse dessas mães e nem só de quem tem plano de saúde. “Isso vai afetar o SUS, porque o SUS hoje já não dá conta. É uma catástrofe, parece um pesadelo, não parece real”, lamentou ela, que é mãe do Davi, de 5 anos. Ela relata que seu filho, ao começar as intervenções que a família conseguiu judicialmente, era não verbal, enquanto hoje é comparado a uma criança neurotípica. “Podemos deixar de ter o direito a esses tratamentos. E não são só crianças, são adultos também. Pessoas com doenças raras, com deficiência, com câncer”, destacou.
O filho de Cami Veiga, do movimento Lagarta Vira Pupa, também teve a oportunidade de se desenvolver a partir de uma terapia que o plano de saúde não cobriria, à qual teve acesso com um ano e meio. “O rol taxativo mata a esperança. Tira a oportunidade de lutarmos, tira o nosso direito de buscar na Justiça o direito à saúde e vida dos nossos filhos”, apontou. Luciane Gonçalves, mãe do João Pedro e vice-presidente da AFAPA, também obteve o tratamento para o filho mediante decisão judicial, por uma liminar obtida cinco anos atrás. “Famílias vivem com a insegurança de (não saber) se seu filho vai continuar fazendo o tratamento necessário”, relatou.
A coordenadora do Movimento Nacional das Pessoas com Deficiência do Fórum Social Mundial, Josiane França, trouxe seu depoimento enquanto pessoa com deficiência que adquiriu a cegueira através de uma meningite. “Fiquei cinco meses no hospital, um mês em coma induzido. Então a dor dessas mães é a minha também. Se eu não tivesse tido os atendimentos fisioterápicos que tive, possivelmente não teria recuperado minha mobilidade. Que eles tenham mais sensibilidade para entender que isso é uma necessidade. A gente quer dignidade, eles estão nos humilhando”, disse.
Junto com o diagnóstico de autismo, vem a pressa, conforme explicou Erika Rocha, coordenadora do projeto Angelina Luz. “Tem famílias que tiram do arroz e feijão para custear um plano de saúde e ainda têm que brigar judicialmente por seus direitos com os planos. E isso demanda tempo, o que nossos filhos não têm”, colocou, mencionando que o projeto atende principalmente famílias em vulnerabilidade social, em sua maioria mães solo. A sua própria filha, que tem seis anos, aguarda desde 2018 por tratamento, neste meio tempo tendo retrocessos de saúde que não irá recuperar.
“Interpretação jurídica é de que essa é uma lista mínima, e não máxima”
Após as falas das mães representantes de instituições, a audiência ouviu Ana Carolina Munhoz, integrante do Conselho Nacional de Saúde, que trouxe uma apresentação acerca dos planos de saúde, mostrando que o rol exemplificativo não traz insustentabilidade para o mercado. Nos últimos dez anos, quando a lista já era exemplificativa, os planos seguiram tendo superávit, sem nenhum risco de colapsar. “Quando o usuário contrata um plano de saúde, não tem como ele saber quais tratamentos ele vai precisar, quais doenças ele vai ter. Não faz sentido o rol do plano de saúde ser taxativo, apenas exemplificativo. A interpretação jurídica é de que essa é uma lista mínima, e não máxima”, explanou.
A defensora pública estadual Liliane Deble se colocou ao lado da luta, que classificou como digna, pertinente e importante. “Hoje estamos numa situação em que temos que falar o óbvio e lutar pelo óbvio. 100% dos segurados por planos de saúde serão atingidos pelo rol taxativo. Hoje o rol, ainda considerado exemplificativo, prevê tecnologias e terapias desatualizadas. Mas os planos não querem gastar mais. Isso cria uma desigualdade entre as partes, o poder econômico se sobrepõe”, lamentou.
Os dois homens que falaram na audiência foram dois advogados que também são pais, e trouxeram seu depoimento enquanto profissionais e familiares de crianças autistas. “Não são apenas crianças com autismo, algumas vezes são pais idosos esperando uma cirurgia. Tenho caso de uma pessoa que tinha 6 a 12 horas de vida se o tratamento não fosse realizado, a mãe pagou e graças ao caráter exemplificativo foi ressarcida”, contou Leonardo Leão. “É falacioso o argumento de que o rol exemplificativo vai quebrar os planos de saúde. Como pode haver desequilíbrio econômico se há lucro? Nossos filhos não são uma fonte de lucro para clínicas e planos”, contribuiu Franklin Façanha.
Duas profissionais da área da saúde também trouxeram o ponto de vista de quem acompanha diariamente estes pacientes. A neuropediatra Fabiana Mugnol destacou o impacto gigantesco no neurodesenvolvimento de crianças causado pela pandemia, que ainda não se sabe precisar. Já Francine Hartman, fisioterapeuta e doutora em Saúde da Criança, apontou que quando o atendimento é negado, se nega o desenvolvimento daquela criança. “Em 2017, me tornei mãe e meu filho foi diagnosticado com autismo, iniciando intervenção com dez meses. Hoje, as pessoas me olham e falam: ‘ele nem parece autista'”, disse, o que muitas mães presentes responderam também já terem passado. “Ninguém sabe a nossa luta diária”, acrescentou.
Mães na luta para garantir direitos
Diversas mães também relataram casos concretos em que seus filhos foram afetados pela possibilidade de conseguirem ou não os tratamentos judicialmente. “Se os tratamentos fossem barrados, minha filha estaria em estado vegetativo numa cama”, relatou Tatiane Leal, acompanhada de sua filha Laura, de 12 anos, que tem a síndrome Wolf-Hirschhorn, a qual acarreta deficiências múltiplas. “Recentemente tivemos a negativa de um tratamento e acreditamos que tenha sido pela decisão do ministro Salomão. O impacto tem sido muito grande e a perda desses tratamentos que estão dando muito certo tem gerado um abalo na nossa comunidade”, acrescentou Flávia Sá, referindo-se ao ministro Luis Felipe Salomão, relator da decisão no STJ, que votou para que o rol se tornasse taxativo.
Luiza Braga, mãe do Rafael, de 4 anos de idade, relatou sua luta após o plano de saúde negar o filho como beneficiário. Após conseguir ingressar em outro plano, a família está na luta pelo reembolso das medicações que ele necessita. “Meu filho é autista nível 2/3, ele toma duas medicações sem as quais não sei onde estaríamos. Hoje minha vida terminaria com esse rol”, afirmou. De forma semelhante, o filho de Eliane Bittencourt, presidente da Amparho, precisou de tratamentos que o plano negou e foram obtidos devido ao caráter exemplificativo, que permitiu a conquista na Justiça. “O rol atinge a toda a população. Porque quem não conseguir o atendimento pro seu filho pelo plano, vai tentar pelo SUS”, apontou.
Ao encerrar a audiência, Luciana Genro apontou que o julgamento do STJ será importante, mas ainda é possível recorrer ao Supremo Tribunal Federal caso o resultado seja negativo. “Mas tenho esperança de que toda essa luta chegue aos ministros e eles privilegiem o direito à vida. Garantir um tratamento digno a quem necessita e quem tem direito é viável sem que os planos tenham a existência ameaçada. Os tratamentos determinados pelos médicos precisam ser atendidos pelos planos de saúde”, garantiu Luciana Genro, agradecendo a mobilização das mães ao encerrar a audiência: “vocês estão cumprindo um papel fundamental que não é só de defesa dos seus filhos e filhas, é uma defesa da cidadania e de todos nós”.