A partir de solicitação da deputada estadual Luciana Genro (PSOL), a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa realizou nesta sexta-feira (25) uma audiência pública para tratar da discriminação e perseguição política sofrida pelas parlamentares transexuais no Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo em que o país avançou elegendo 30 mulheres trans no último pleito eleitoral, a presença desses corpos em espaços de decisão demonstra o quanto é preciso avançar na garantia de direitos.
Infelizmente, nas Câmaras Municipais do estado a transfobia velada é rotina e se apresenta de formas diversas, por vezes nem tão velada assim. O assunto foi pauta do Fantástico e reacendeu uma discussão antiga na atuação da deputada, a luta em defesa da comunidade LGBTI.
“Se vereadoras que são eleitas por mandato popular sofrem ataques como esses, isso se propaga de maneira ainda mais brutal para o conjunto da comunidade LGBTI, especialmente as pessoas trans. São casos de intimidação, discriminação, preconceito e silenciamento. É um direito ocuparem esse espaço público ao qual foram designadas pelo voto popular e trazer o debate para a CCDH é, também, uma forma de barrar a violência contra a população,” declarou Luciana Genro.
Lins Roballo (PT), vereadora mulher trans negra que atua em São Borja, teve a chefe de gabinete exonerada sem qualquer explicação ou justificativa pela presidência da Câmara Municipal. Ela conta que a mandata enfrenta um processo contínuo de marcar presença no processo político local e que enfrenta grandes desafios na articulação política e na forma de organização.
“Nossas vozes são invisibilizadas. Tivemos uma sessão de ataques e esse foi um processo desumano de perseguição para tentar enfraquecer, fragilizar o processo político, desqualificar e perseguir a mandata, nos apontando como pessoas que não deveriam estar lá. Querem uma docilização das nossas pautas e da nossa presença, mas não vão conseguir,” afirmou a vereadora. Numa perseguição escrachada ao processo de trabalho da equipe de Lins, até o momento nenhum requerimento, indicativo, projeto de lei ou documento encaminhado pela mandata foi aprovado na Câmara Municipal.
Natasha Ferreira (PSOL), eleita suplente em 2020, está vereadora em Porto Alegre. Ela, que foi a primeira assessora parlamentar transexual na história da Assembleia Legislativa, no gabinete da deputada Luciana Genro, assumiu a titularidade do mandato durante o mês do orgulho LGBT no lugar do vereador Roberto Robaina (PSOL) e pontua que as violações são diferentes, dependendo da localização geográfica, e que a AL tem uma grande responsabilidade com o povo gaúcho e casas legislativas no interior do estado, que ainda funcionam de forma retrógrada no que diz respeito ao debate acerca da diversidade.
“A transfobia vai se revelando nos espaços institucionais. Ela aparece de forma velada, nas exclusões, no não diálogo. Vai se construindo de uma forma estrutural e nem sempre é física. Associações e organizações são fundamentais para garantir que uma próxima geração não seja condicionada a ser considerada sub-humana, muitas vezes tendo como única condição – e não opção – a prostituição,” explica Natasha. Destacou, ainda, o despreparo das escolas para trabalhar com o que não é naturalizado socialmente e a urgência da construção de políticas públicas que contemplem essa população que fortaleçam a resistência institucional juntamente com a luta política das ruas.
Vereadora na cidade de Rio Grande, Regininha (PT), se declarou como um corpo político que busca representatividade no legislativo. Ex-garota de programa, destaca a importância dos movimentos sociais e políticos, dos debates sobre gênero e sexualidade apresentados por instituições ligadas à causa LGBTQI.
“Consegui perceber que toda violência vivenciada por mim e a maioria dos corpos trans no Brasil por muitas vezes é naturalizada e isso faz com que levemos um tempo para reconhecer ela nos espaços de poder. Mas antes de ser um corpo travesti, sou uma cidadã de direito que tenho o direito de ocupar todo e qualquer espaço. Quando temos esse poder querem ver nossos corpos caídos ao chão, mas agora terão que se acostumar a compartilhar e respeitar nossos corpos nos legislativos do estado: estamos apenas começando,” complementou.
A deputada Luciana Genro sugeriu, como encaminhamento, buscar dar visibilidade ao problema e como as vereadoras vêm resistindo e se afirmando nessa batalha política para ocupar os espaços legislativos. Ainda encaminhou que será solicitado, junto ao presidente da CCDH, o envio de um ofício à Câmara de Vereadores de São Borja cobrando esclarecimentos acerca da exoneração da chefe de gabinete da vereadora Lins Roballo.
Luta que se fortalece na mobilização política e social
Representando o Conselho Estadual de Promoção dos Direitos LGBTs, Cléo Araújo é suplente de vereadora em Caxias do Sul e lembrou que a primeira exclusão com as pessoas trans acontece no espaço familiar. Que a falta de suporte familiar impacta no futuro dessas pessoas de forma tão avassaladora que se mostra na expectativa de vida da população trans, que é de apenas 35 anos.
“Unidas e unidos somos mais fortes. Só dessa maneira quebraremos todos os preconceitos. Hoje temos 15 pessoas trans morando embaixo da ponte em Porto Alegre, que estão ali porque a família lhes virou as costas e não têm dinheiro para poder morar. Essa é a realidade. É necessária a construção de políticas públicas e seguiremos na luta pela inclusão social das pessoas que estão à margem da sociedade,” explanou.
Em nome da Comissão de Direito Humanos da OAB-RS e Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB Nacional, Leonardo Vaz prestou solidariedade às vereadoras e colocou a entidade a disposição para encaminhamentos legais acerca das violências sofridas pelas parlamentares.
“Acredito que além de notas, manifestações públicas e denúncias, ações também são necessárias. Estamos acompanhando de perto a questão da vereadora Lins. A transfobia, ainda que velada, é a forma que grupos conservadores encontraram para suprimir os nossos espaços de fala duramente conquistados. Além de ser um momento de luta por mais direitos, de garantia de mais espaços, é um momento de muita resistência. E para isso precisamos de união: de todos os grupos e parlamentares eleitos,” disse Leonardo.
Somente 0,02% da população de travestis e transexuais estão nas universidades. A denúncia foi feita por Márcia Monks, do Conselho LGBT de Pelotas.
“No ano de 2020 foram assassinadas com requintes de crueldade mais de 175 travestis e transexuais no Brasil. Moramos em um país que é recorde mundial em assassinatos! Eleger tantas parlamentares trans é uma grande reviravolta e incomoda muita gente. Só nos sobrou a política, o glamour fica com outros LGBTS, para nós é o recorte da política. Somos corpos políticos, que falam, não são neutros e estarão nesses espaços,” disse, prestando solidariedade às parlamentares.
Caio Klein, da ONG Somos, acredita que o objetivo dessa audiência é ouvir a experiência social das pessoas que estão passando por esse fenômeno que não é novo e que agora se nomeia enquanto violência política, ouvir a experiência das parlamentares.
“Nossa perspectiva é de que o movimento social tem um papel fundamental em levar ao Estado essa discussão e começar as mudanças por dentro. Parece muito claro que essa violência política que elas sofrem é reflexo, é como colocar uma lente te aumento, do que já vemos diariamente. É preciso readequar os sistemas e rever os procedimentos da segurança pública para ter dados sobre a população LGBT e mudar essa perspectiva com urgência e é apenas com o apoio dos servidores públicos que essa mudança será possível,” falou.
Celio Golin, da ONG Nuances, parabenizou as vereadoras e registrou que neste ano que a Nuances completa três décadas é uma vitória vê-las em espaços de decisão, pois isso é resultado de uma luta coletiva. “Vocês estão ocupando um espaço que é ocupado pelos homens que sempre fizeram conchavos políticos e quando se deram conta, as pessoas mais marginalizadas estavam lado a lado, podendo decidir como eles. É um momento extremamente importante, de mudança de paradigma dentro de um contexto muito maior,” destaca Célio.
Por fim Rafael Aldab, representando o Juntos LGBTI, lembrou o crescimento da política de ódio que vem se manifestando de formas cada vez mais clara. O grupo teve uma sala de vídeo invadida, na última semana, por bolsonaristas que mostraram imagens de uma bandeira LGBT sendo queimada. “A gente tem que seguir cobrando das autoridades que as providências sejam tomadas. Não podemos aceitar a impunidade dos intolerantes. Seguiremos lutando junto aos parlamentares, para que nenhum desses crimes aconteça e se acontecer, cobraremos justiça por cada vida perdida,” concluiu.
Segurança pública na luta
Andréa Mattos, delegada da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI) de Porto Alegre, explicou que a atribuição da delegacia ainda é restrita a capital, mas que formações estão sendo oferecidas em diversas cidades do interior. O intuito é oferecer aos servidores da segurança pública conhecimento para que realizem seu trabalho de forma a respeitar as pluralidades dos indivíduos, construindo, aos poucos, uma alteração de paradigmas interno e de certa forma, externo.
“Verificando essa necessidade, desenvolvemos um projeto para qualificar policiais de delegacias não especializadas. É um curso de capacitação para policiais que trabalham em outros órgãos, com o objetivo de fazer com que mais policiais tenham esse olhar diferenciado e necessário para o atendimento às vítimas de intolerância,” contou a delegada.
Como denunciar?
Quem for vítima de crimes de intolerância pode se dirigir à sede da DPCI para registrar uma ocorrência (Avenida Presidente Franklin Roosevelt, 981) ou denunciar o caso através da Delegacia Online. Ainda é possível fazer o registro em qualquer delegacia de Porto Alegre, que remeterá a investigação diretamente à DPCI. Em outras cidades a denúncia pode ser feita em qualquer delegacia.