*Por Marcella Fernandes, do HuffPost Brasil
No ano eleitoral, em meio à intervenção federal no Rio de Janeiro e com a morte da vereadora Marielle Franco (PSol), uma das fundadoras da legenda socialista, Luciana Genro, afirma que a esquerda precisa melhorar o diálogo com a população no debate da segurança pública. Para a ex-deputada federal, a mudança é necessária para impedir o avanço do discurso de presidenciáveis como o deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ).
Candidata a deputada estadual no Rio Grande do Sul e presidenciável em 2014, Genro vê no processo eleitoral uma oportunidade do partido promover suas propostas, como a descriminalização de drogas e a unificação da polícia militar com a polícia civil.
O PSol tem conversado com o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares para contribuições com o programa do pré-candidato do partido ao Palácio do Planalto, Guilherme Boulos.
O especialista foi secretário nacional de segurança pública do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e titular da pasta de segurança no governo de Anthony Garotinho, no Rio. É autor do livro Elite da Tropa, que inspirou o filme Tropa de Elite, dirigido por José Padilha.
Genro nega a possibilidade do deputado estadual do Rio Marcelo Freixo (PSol) ser candidato ao Executivo local. “Não mataram o Freixo porque não puderam e escolheram a Marielle porque era um alvo menos visado e não havia sofrido as ameaças que o Freixo sofreu ao longo da sua trajetória política”, afirmou ao HuffPost Brasil.
Confira os principais trechos da entrevista
HuffPost Brasil: O debate sobre segurança pública têm se colocado como um dos temas centrais na disputa eleitoral e partidos de direita, como o DEM, têm tido protagonismo no debate no Congresso. Como a esquerda pode contribuir nesse sentido?
Luciana Genro: O problema da violência precisa ser enfrentado de forma estrutural e isso significa rediscutir a política de guerra às drogas, que é uma política fracassada porque coloca todas as forças de segurança numa luta absolutamente inglória porque não se termina com o consumo de drogas dessa forma. Aliás, o consumo de drogas é uma característica da humanidade ao longo da sua existência, então a droga precisa ser tratada, quando necessário, como uma questão de saúde.
O consumo de drogas é uma característica da humanidade ao longo da sua existência, então a droga precisa ser tratada, quando necessário, como uma questão de saúde.
Além descriminalização da maconha, é preciso discutir sobre que postura as forças policiais adotam em relação ao problema do tráfico e ao encarceramento dos pequenos traficantes. Nós temos um círculo vicioso que se retroalimenta. A polícia vai para a rua, prende traficantes, leva para o sistema prisional. Lá, os que não tinham facção vão se organizar com facções.
Os que chegam com facções vão ficar lá dentro devendo favores às facções porque o sistema prisional está falido. Ele não oferece as mínimas condições de sobrevivência para uma pessoa ali dentro que não esteja vinculada a uma facção. Então o apenado sai de lá muito mais perigoso do que entrou, na maior parte das vezes. E se era perigoso, só vai incrementar seu know how de violência no presídio.
Quais outros pontos?
Tem outras questões também a respeito da unificação das polícias. Uma polícia de um ciclo só, que não seja dividida como é hoje. Que as inteligências se comuniquem porque o enfrentamento às milícias – e isso o Marcelo Freixo disse quando fez o relatório do enfrentamento às milícias no Rio de Janeiro – precisa ser feito com inteligência.
Não é com fuzil na rua, porque o miliciano não vai ser pego num confronto com a polícia. O miliciano atua de forma dissimulada, como fizeram com a Marielle, provavelmente.
É preciso fortalecer a inteligência das polícias para poder desmoronar essas organizações criminosas que se constituem nas milícias e em outros tipos de formações altamente organizadas.
Em relação à unificação ou desmilitarização da polícia, que também é parte do programa do Guilherme Boulos, como construir apoio para essa proposta no Congresso e também diante da população?
Acho que a gente precisa fazer esse debate com a sociedade. Aqui no Rio Grande do Sul, o [Roberto] Robaina, que vai ser nosso candidato a governador, vai centrar a campanha em torno desse tema, da questão da guerra às drogas, da polícia, das mudanças que não se pode fazer em âmbito estadual, mas que a gente pode ir discutindo.
Eu acredito que a campanha do PSol tem que servir para isso, tanto a nível nacional quanto a nível das campanhas estaduais. Colocar nossos candidatos a governador para fazer esse debate porque, se a gente não fizer, acaba reproduzindo uma campanha demagógica de que vamos melhorar a segurança do povo colocando mais policiais na rua quando isso é uma ilusão. Se a gente não fizer mudança estrutural não adianta colocar mais policiais na rua. Aumenta a sensação de segurança, mas o criminoso que age de forma mais sofisticada não é barrado pela polícia na rua.
Só barra o pequeno criminoso. Não é pouca coisa e por isso é necessário ter policiais na rua, ter mais investimento nas polícias estaduais, no treinamento, no equipamento, na forma de se relacionar com as comunidades. Porque a polícia muitas vezes acaba gerando medo, como no Rio de Janeiro. A gente viu esse exemplo da Rocinha, que eles entram com o pé na porta, arrebentando, não querem nem saber quem é quem. Então tem que ter um treinamento mais qualificado também para a polícia.
O papel da esquerda no momento seria de promover o debate da descriminalização de drogas e da desmilitarização da polícia?
Embora o conceito de desmilitarização esteja correto, eu não gosto de usar essa expressão porque a população confunde a ideia de uma polícia desmilitarizada com uma polícia desarmada. Prefiro falar unificação do ciclo da polícia e qualificação da inteligência.
A desmilitarização é parte disso, mas quando a gente fala só desmilitarização as pessoas entendem ‘a Esquerda quer uma polícia sem armas’.
Obviamente que eu gostaria que a gente chegasse numa sociedade em que a gente possa ter uma polícia sem armas, mas não é o caso hoje, infelizmente.
A gente precisa incrementar também nossa forma de comunicação com a população.
A Esquerda não tem conseguido comunicar suas propostas de forma convincente e por isso a população tem caído nesse canto de sereia do discurso Bolsonaro, que é o discurso da ‘ultramilitarização’, do armamento, da violência, que é um tiro no pé porque a violência só vai gerar mais violência e isso é um ciclo interminável.
Como melhorar essa comunicação e atrair um apoio maior da população para propostas opostas a liberação de armas, por exemplo?
Melhorar a comunicação significa formular nossas propostas de uma forma mais inteligível para as pessoas, dialogando com os medos e inseguranças que são totalmente compreensíveis, pelos níveis de violência que a gente tem no País.
Ao simplesmente falar ‘desmilitarização’, a gente não consegue transmitir a mensagem que a gente quer. A gente precisa explicar que queremos uma polícia bem treinada, bem equipada, com inteligência, que saiba se comportar, que saiba o momento certo de agir, que não coloque a vida civis em risco desnecessariamente, que tenha um atitude humanista ao mesmo tempo em que busca coibir o crime.
E uma política de segurança centrada fundamentalmente na prevenção porque depois que o cidadão já está cooptado pelo crime é muito mais difícil reverter isso. Precisa de uma política para impedir que os jovens sejam aliciados pelas gangues, pelos tráficos.
A senhora acredita que a legalização progressiva das droga seria um ponto chave para mudar a dinâmica do tráfico e reduzir a criminalidade?
Acredito e as experiências internacionais mostram que há um impacto muito positivo nos índices de violência com a descriminalização fundamentalmente da maconha, que é o que a gente já está vendo em vários países. Inclusive a arrecadação de impostos poderia trazer recursos para políticas públicas como melhorar a inteligência da polícia, treinamento, equipamento.
Seria um passo muito importante para poder diminuir o poder de fogo do tráfico. É a descriminalização e regularização do uso da maconha porque não significa liberar totalmente. Tem de ser tratada como o álcool e o cigarro, que tem regras para serem consumidos.
Como aumentar o apoio popular a essa medida?
O apoio ou rejeição está muito mediado pela mensagem que as pessoas recebem através dos meios que têm de informação, como igrejas, televisão e rádio. E a mensagem que é recorrente nesses meios, com poucas exceções, é de que as drogas são o grande problema da humanidade e que se a gente acabar com os traficantes e prendê-los todos, vamos resolver os problemas de segurança.
Só que para começar não se consegue prender todos os traficantes porque no momento em que um é preso, outro assume o lugar dele.
Acredito que se a gente tiver a oportunidade de fazer um debate com tempos justos para cada posição é possível convencer as pessoas de que a legalização é o melhor caminho até porque o uso da maconha hoje é bastante disseminado. E grande parte das pessoas percebe que a maconha acaba sendo uma porta de entrada para outras drogas não pelo uso em si, mas por causa do traficante, que é a porta de entrada para outras drogas que são oferecidas para a pessoa que é usuária de maconha.
De que forma o ataque à promoção de direitos humanos, com o discurso de que é “defesa de bandidos”, dificulta esse debate?
Foi um debate que nós perdemos ao longo dos últimos anos porque a extrema direita conseguiu fazer uma narrativa de direitos humanos vinculado exclusivamente à defesa de ‘bandidos’. Até porque não há uma democracia real nos meios de comunicação e as narrativas muitas vezes são disseminadas de acordo com os interesses de quem detém esse monopólio da comunicação.
Mas acredito que a morte da Marielle ajudou, tragicamente, a se reposicionar esse debate porque colocou em evidência uma pessoa que era uma lutadora dos direitos humano e estava envolvida em lutas de diversos segmentos, desde as mulheres negras, passando pela comunidade LGBT, as favelas e comunidades do Rio, pelos policiais também mortos nos confrontos.
A execução da Marielle jogou luzes sobre o que são os direitos humanos e como é importante que todos estejamos em defesa dessa bandeira porque são uma conquista universal e cada vez menos estão sendo respeitados.
Os direitos humanos estão relacionados com tudo a nossa vida, com direito à saúde, educação, segurança pública, com o direito de não ser executado ali na esquina por um miliciano ou policial.
Por causa desse contexto da morte da Marielle, é o momento do PSol ter uma candidatura forte ao governo do Rio?
A candidatura do Tarcísio [Motta] tem um grande potencial e acho fundamental que o Rio de Janeiro seja essa vitrine que a gente precisa para desenvolver um programa que dialogue com esse problema da segurança pública e dos direitos humanos.
Não há possibilidade de o Marcelo Freixo ser candidato ao governo do Rio em vez de deputado federal?
Não existe essa possibilidade. Isso é uma invenção de pessoas interessadas em colocar o Freixo numa sinuca de bico porque o partido já escolheu a candidatura. Não existe nenhuma hipótese de o Freixo desistir de ser candidato a deputado federal. Nós precisamos dele com mandato, não só para vencer a cláusula de barreira, mas pela própria preservação da vida dele.
Se a Marielle foi assassinada daquela forma cruel, o Freixo com certeza era um dos alvos prioritários. Não mataram o Freixo porque não puderam e escolheram a Marielle porque era um alvo menos visado e não havia sofrido as ameaças que o Freixo sofreu ao longo da sua trajetória política.
E o trabalho dele na Câmara vai ser fundamental para levantar essas pautas. Essas pessoas que querem apoiá-lo para governador podem se unificar para apoiá-lo a prefeito em 2020.
*Entrevista com Luciana Genro originalmente publicada no HuffPost Brasil em 27/03/2018.